Em 15 de janeiro
de 2025 faleceu o diretor, roteirista, produtor, artista
visual, músico e ator David Keith Lynch. Ele ficou
conhecido por seus filmes surrealistas. O estilo cinematográfico dele foi
chamado de “Lynchiano”, no qual há imagens de sonhos e desenho
sonorometiculoso.
David
Lynch nasceu em Missoula, Estado de Montana, Estados Unidos, em uma família de
classe média, em 20 de janeiro de 1946. Seu pai,Donald Walton Lynch, era um
pesquisador do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e a mãe era
uma professora de inglês, Edwina "Sunny" Lynch. A criação de David
foi influenciada pelos ensinamentos da religião presbiteriana.
Em
sua infância ele esteve em vários locais do interior do país por causa do
trabalho de seu pai. Sobre sua infância ele disse: "casas
elegantes, ruas arborizadas, o leiteiro, construindo fortes no quintal, aviões
zumbindo, céu azul, cercas de estacas, grama verde, cerejeiras. O centro da
América como deveria ser." Depois foi
estudar pintura. Deixou o curso que estava fazendo e foi para a Europa. Quando
voltou aos Estados Unidos, foi estudar na Academia de Belas Artes da
Pensilvânia. Casou-se em 1967 e teve uma filha, que seria depois diretora de cinema,
Em Los Angeles,em
1971, Lynch frequentou o Conservatório de Estudos Avançados de Cinema do
famoso American Film Institute. Fez filmes tipo
curta-metragens: Six Men Getting Sick (1966), The
Alphabet (1968), The Grandmother (1970) e The
Amputee (1974). Foi em Los Angeles
que ele produziu seu primeiro filme longa-metragem Eraserhead, um
terror surrealista, em 1977 e que demorou cinco anos para ser concluído. Nesse
período o seu casamento acabou. Em 1980 ele foi contratado para dirigir The
Elephant Man, que foi produzido por Mel Brooks. O filme lhe deu retorno
financeiro e foi elogiado pela crítica, tendo recebido oito indicações para o
Oscar, entre elas o de melhor diretor. Nesse filme se vê o absurdo bullying
social sofrido por Joseph Merrick, exposto até mesmo em circos de aberrações.
Passou
a trabalhar para a De Laurentiis Entertainment Group e fez os filmes Dune (um
épico de ficção científica que não foi bem avaliado pela crítica e não teve
sucesso de bilheteria), em 1984 e depois Blue Velvet(1986), um
filme de crime neo-noir, muito elogiado e que teve indicação ao Oscar.Na
realização desse filme iniciou-se uma parceria com o compositor Angelo
Badalamenti que continuaria para outros filmes.
Nos
anos 90 criou a série de tv Twin Peaks (1990-1991) que teve
continuação em 2017 e o filme Twin Peaks: Fire Walk with Me (1992),
que não teve sucesso comercial. Na série e no filme o ator principal foi Kyle
MacLachlan, que trabalhou com Lynch em Duna e Veludo
Azul. Na série Lynch dirigiu o piloto e cinco dos 29 episódios das duas
primeiras temporadas. Outras criações dessa época foram Wild at Heart,de1990
(filme que ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes) e The Straight
Story (1999). Os filmes seguintes seguiram mais para o surrealismo,
com base na “lógica dos sonhos”: Lost Highway, de 1997; Mulholland
Drive (2001) e Inland Empire (2006). Nesse início do
século XXI Lynch produziu programas para a web como DumbLand (2002),
que era uma animaçãoe o sitcom surreal Rabbits (2002).
Lost
Highway, de 1997, foi um thriller dentro
do estilo fantástico que foi considerado como a obra mais insana de Lynch e
logo depois ele lançou The Straight Story (1999), um
tipo “mais calmo” de filme. Mulholland Drive (2001) foi uma
obra de Lynch que foi planejada como série, porém os produtores não gostaram e
então foi adaptada para o cinema. Nesse trabalho Lynch voltou ao seu estilo
anterior, Nesse filme foi revelada a atriz Naomi Watts e Lynch ganhou o prêmio
de melhor diretor do Festival de Cannes. O último filme que Lynch fez foi Inland
Empire. Lynch criou filmes em animação e em seu site pessoal havia um
grande conjunto de trabalhos. Em 2020 ganhou um Oscar honorário pelo conjunto
de sua obra. Tinha ganhado um Globo de Ouro em 1991 de melhor série dramática
com a série Twin Peaks. Recebeu duas vezes o Prêmio César de Melhor Filme Estrangeiro, em 1982
por "O Homem Elefante" e em 2002 por "Cidade dos
Sonhos".Participou como ator do longa Os Fablemans (2022),
no papel do diretor John Ford.
Lynch era um
seguidor das práticas de meditação transcendental desde os anos 1970 e
encorajava a a intuição como ferramenta de compreensão dos filmes. Ele liderou
a Fundação para a Educação Baseada na Consciência e Paz Mundial,
que é dedicada ao apoio junto a veteranos de guerra, refugiados africanos e
pessoas em situação de rua. Ele foi casado por quatro vezes e deixou quatro
filhos. Faleceu aos 78 anos. A causa provável
da morte foi enfisema pulmonar. Ele fumou muito em sua vida, tendo dito: “Fumar é algo que eu
absolutamente amei, mas no fim das contas, isso me afetou”.
A
família de Lynch anunciou nas redes sociais: “É com profundo pesar
que nós, sua família, anunciamos o falecimento do homem e artista, David Lynch.
Gostaríamos de ter um pouco de privacidade neste momento. Há um grande buraco
no mundo agora que ele não está mais conosco. Mas, como ele diria: ‘Fique de
olho no donut e não no buraco.’ É um lindo dia com sol dourado e céu azul por
todo o caminho”. “(...) "Existe uma enorme lacuna no mundo, agora que ele
(Lynch) não está mais conosco".
Filmes: Eraserhead, 1977 (Lynch foi
diretor, produtor, escritor); The Elephant Man,1980 (Lynch foi
diretor, produtor, escritor e ator); Dune, 1984 (Lynch foi diretor,
escritor e ator); Blue Velvet, 1986 (Lynch foi diretor e escritor); Zelly
& Me, 1988 (Lynch foi ator);Wild at Heart,
1990 (Lynch foi diretor, escritor e ator); Twin Peaks: Fire Walk with
me,1992 (Lynch foi diretor, produtor, escritor e ator); Lost
Highway, 1997 (diretor e escritor); The Straight Story, 1999
(Lynch foi diretor); Mulholland Drive,2001 (Lynch foi diretor,
produtor e escritor), devido a esse filme ele ganhou o prêmio Palma de Ouro em
Cannes de melhor diretor; Inland Empire, 2006 (Lynch foi diretor,
produtor, escritor e ator). Outras obras: Twin Peaks: The Missing
Pieces, 2014 (Foi diretor, produtor, escritor e ator); Girlfriend's
Day, 2017 (ator); Lucky, 2017 (ator).
Televisão: Les Français vus par, 1988
(Foi produtor); Twin Peaks, 1990-1991(Foi criador,
produtor, escritor e ator); On The Air, 1992 (Foi criador,
produtor e escritor); Hotel Room, 1992 ( Foi criador, produtor
e escritor); Twin Peaks: The Return (Foi criador, produtor,
escritor e ator).
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Segundo David
Fear, da revista Rolling Stone ( EUA):
“O diretor combinou a
inocência da era Eisenhower e o cinema experimental para forjar uma das
carreiras mais inovadoras e sombriamente hilárias do cinema americano.
Se você
viu Veludo Azul, então você se lembra da abertura — e quer você ame
ou odeie a obra-prima de David Lynch de 1986, não é um filme que você é capaz
de esquecer. A câmera se move para baixo em uma cerca branca, enquanto Bobby
Vinton canta sua faixa-título da versão de 1963. As rosas pontilhando a parte
inferior do quadro são tão vermelhas Technicolor que machuca seus olhos ao
olhar para elas. Um caminhão de bombeiros, completo com um dálmata no aparador,
passa. Um guarda de trânsito ajuda crianças em idade escolar a atravessar a
rua. Uma mulher em uma sala de estar suburbana toma café e assiste a um filme
na TV. Seu marido está regando o quintal lá fora. É um dia perfeito para fotos
em Smalltown, EUA.
Então o homem tenta
desembaraçar sua mangueira e, sem aviso, cai no chão. Um cachorro estala suas
mandíbulas para o jato ascendente enquanto uma criança com um pirulito entra no
fundo. E então a câmera começa a descer, descer, descer na grama. Uma conversa
profana preenche a trilha sonora e o que parece ser dezenas e dezenas de
insetos pretos brilhantes se contorcendo e rangendo mutualmente. Eles podem ser
besouros, dado o leve brilho de sua carapaça, ou podem ser formigas — estas
últimas logo aparecem deslizando sobre uma orelha decepada. Mas,
independentemente disso, essas criaturas estão vasculhando logo abaixo da
superfície plácida, saída diretamente da era Eisenhower. Tudo parece ótimo
acima do solo. O que está acontecendo no subsolo, no entanto, é outra história
completamente diferente (...)”
E ainda o mesmo autor:
“(...) Blue Velvet
pode ser o filme definidor da era Reagan por volta de 1986 — um retorno para
uma era passada que violentamente fura o mito da cidade brilhante em uma colina
e pede que voltemos nossa atenção para os homens da areia coloridos fazendo
coisas indizíveis a portas fechadas. É onde o termo "Lynchian" nasceu
como uma descrição para sua mistura particular de surrealismo, ironia, humor
inexpressivo e horror mortalmente sério. O adjetivo definiu todo o seu trabalho
depois, fosse em comparação com essa sensibilidade ou em contraste com ela. (O
filme mais chocante que Lynch já fez, de longe, ainda é Uma História Real, seu
filme da Disney de 1999 sobre um homem idoso que faz uma viagem pelo país em um
cortador de grama para visitar seu irmão afastado, simplesmente porque ele interpreta
uma história completamente séria.) E se sua continuação, a homenagem distorcida
ao Mágico de Oz, Coração Selvagem (1990), inicialmente sugeriu que Lynchian era
um gosto adquirido, seu outro projeto naquele ano logo provou que o grande
público estava preparado para receber uma versão para a telinha de seu estilo
característico de contar histórias.
É difícil
resumir o quão radical e popular Lynch e Mark Frost, cocriador de Twin Peaks,
eram quando chegaram às ondas do rádio no início dos anos 1990, ou o quão
rápido sua tão citada vibe "Peyton Place com ácido" e personagens
excêntricos se tornaram parte do vernáculo cotidiano. Lynch estava na capa da
revista Time, e todo mundo queria um pedaço da torta de cereja. Ele
fracassou durante sua segunda temporada, mas, naquela época, Lynch e Frost
revelaram que esse modelo para futuros procedimentos de garotas mortas era, na
verdade, uma história de abuso. Outra fachada suburbana perfeita, outro pires
cheio de segredos sendo sorvidos desleixadamente nas sombras (...)”. ...Agora
David Lynch se foi, deixando para trás um extraordinário corpo de trabalho que
mapeia a Nova e Estranha América que ele testemunhou em primeira mão, e no
exato momento em que os insetos espreitando sob os gramados bem cuidados de
nossa nação estão abrindo caminho acima do solo em massa. Ele foi o grande
cronista da escuridão americana. Mas, antes de tudo, ele foi um verdadeiro
artista que seguiu sua musa singular além das barreiras da imaginação e do
pensamento racional (...)".
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Surrealismo, meditação e gnose em David
Lynch por Wilson Roberto Vieira Ferreira
“O surrealismo foi deixado para trás,
lá no século XX, e hoje suas imagens viraram de pôsteres que decoram das casas
de amantes da arte cult às psyOps publicitárias que fisgam o inconsciente do
consumidores. Mas, em plena cena do chamado “cinema da meia-noite” dos anos
1970, David Lynch (que deixou esse mundo aos 78 anos no último dia 15) resgatou
a essência incômoda do surrealismo: o cinema como instrumento para revelar como
no cotidiano o psiquismo preenche aquele “gap” existente entre a alma e a
realidade. Lynch foi o mestre em pegar histórias banais e transformá-las em
labirintos obscuros de pistas falsas num mix de filme noir, gótico americano e
humor negro. Em uma filmografia que surge o seu principal protagonista: o
Detetive – no cotidiano banal que oculta o mundo dos sonhos (e pesadelos),
somente o Detetive pode, através das imagens, resolver enigmas através da
experiência de estranheza e alienação. Porém, no final, David Lynch descobre
que nem o cinema é capaz disso, porque feito pela mesma lógica onírica –
montagem, edição etc. Depois de desconstruir tudo, restou a ele o seu
entusiasmo pela meditação transcendental: silenciar toda linguagem e a mente.
E, quem sabe, encontrar a gnose.
Talvez o surrealismo tenha sido deixado
para trás no século XX. Se na década de 1930, os surrealistas e dadaístas
chocavam a sociedade do velho capitalismo fordista revendo em imagens os
conteúdos proibidos dos sonhos, no pós-guerra tudo mudou. A publicidade, a
sociedade de consumo e a indústria do entretenimento ironicamente realizaram a
agenda vanguardista – transformaram a linguagem onírica dos sonhos em
ferramenta mercadológica.
Por exemplo, as imagens de Dalí
mostraram como era possível colocar imagens do inconsciente em uma tela. Pois a
Publicidade e Hollywood transformaram isso num negócio – diariamente vemos
desejos, fantasias e imagens oníricas em filmes e vídeos publicitários.
No entanto, ninguém foi capaz de trazer
o surrealismo ao mundo contemporâneo com tanta arte como David Lynch. Desde a
estreia com Eraserhead (1977) até o curta de 2016, What Did Jack
Do? (um curta que retornou à estranheza de Erasearhead como um
ciclo que se fechou) Lynch foi um diretor que entrou em mundos indescritíveis,
que não podem ser entendidas através de palavras. E é por isso que é mais
sensato simplesmente experimentar seus trabalhos e não os explicar.
Talvez por isso Lynch ter sido um forte
adepto e divulgador da meditação transcendental – principalmente seus últimos
trabalhos, desde Cidade dos Sonhos (2001),
principalmente Império dos Sonhos (2006) passaram a ser exercícios de
desconstrução da linguagem cinematográfica, lembrando os cut ups dadaístas
e a escrita automática dos surrealistas – o exercício em registrar o que vem à
mente, sem preocupação com a lógica ou o sentido racional.
Era como se Lynch quisesse ir para além
da linguagem, porque os seus signos não conseguem descrever os mundos nos quais
Lynch obsessivamente queria representar. Basicamente, a meditação é um
exercício para silenciar a mente e a linguagem para buscar a transcendência.
E que mundos indescritíveis eram esses?
Aqueles mundos entre a alma e a realidade, intervalos que são preenchidos pelo
psiquismo humano – o imaginário, fantasias, desejos, ilusões e pesadelos.
Sabemos que Freud descobriu que o
psiquismo era a interface entre a alma e a materialidade das funções corporais:
alimento, excreção, reprodução e morte. A forma como a alma vivenciará e
expressará essas experiências corporais será sempre por meio das fantasias, do
desejo e dos simbolismos manifestos nos sonhos, atos falhos e neuroses.
Do corpo para a realidade cotidiana, o
psiquismo será uma espécie de “airbag emocional”, a racionalização diante das
experiências sejam desagradáveis ou felizes – busca sentidos, propósitos,
explicações, que sempre serão imaginárias: a religião, a ideologia, o sonho, os
chistes, os atos falhos etc.
Se nos escritos de Freud tudo é
abordado de forma intelectual e abstrata (esses mundos imaginários são
descritos em termos de formações reativas e na linguagem onírica das
condensações (metáforas) e deslocamentos (metonímias), nos dadaístas e
surrealistas do início do século XX está a fantástica descoberta: podemos
registrar tudo isso graficamente, através de imagens, telas, instalações,
performances etc.
E o cinema faria parte disso. Pelo
menos era o que pensavam teóricos do início do cinema como Eisenstein, Jean
Epstein e Rudolf Arheim – acreditavam que o cinema deveria evitar a mera
representação realista da realidade, seja através da montagem dialética
(Eisenstein), como a percepção antecede a linguagem (Arheim) ou como o filme
revela não a realidade, mas o surreal, o falso, o irreal.
David Lynch e o “Cinema da Meia-Noite”
Surrealistas, dadaístas e cubistas
foram os primeiros a defender o cinema como arte através da possibilidade do
diretor modelar o mundo fílmico e enquadrá-lo dentro de uma ideia abstrata e se
enveredar pelas imagens do psiquismo e do inconsciente.
Tudo isso foi esquecido pela vitória do
realismo cinematográfico hollywoodiano do pós-guerra: a essência do cinema
residia em sua capacidade de reproduzir mecanicamente a realidade, não em sua
diferença da realidade.
O revival do surrealismo nos
EUA só poderia mesmo ter emergido nos anos 1970, num momento de filmes esquizos
(Um Estranho no Ninho ou Taxi Driver) e dos estranhos filmes que
agitavam as sessões da meia-noite em Nova York de filmes estranhos como El
Topo de Jodorowski ou Rock Horror Picture Show.
Nesse cenário surge Eraserhead, a
estreia de David Lynch. Quando estreou em 1977 recebeu poucos comentários
especializados e pobres bilheterias. Não fosse os esforços do distribuidor Ben
Berenholtz em convencer proprietários de alguns cinemas de Nova York do
circuito dos “Cinemas da Meia-Noite”, o filme não conquistaria a base de fãs
leais que tornaria Eraserhead o mais famoso de todos os filmes
cult.
O filme foi uma verdadeira carta de
intenções do diretor sobre a ideia principal que defenderia em toda a carreira:
nossa relação com as percepções físicas da realidade é filtrada e simbolizada
pelo psiquismo. Nunca vemos a realidade como ela é, mas a partir das nossas
sensações de estranhamento e alienação em relação ao real.
Não são nossos olhos que enxergam o
mundo, mas o psiquismo que faz a mediação entre a alma e o mundo. Lynch se
interessava nesse estranhamento, nessa fricção entre a alma e o mundo e como o
psiquismo expressava isso. Caberia ao cinema, assim como os surrealistas e
dadaístas pretendiam, através das imagens, representar esses mundos estranhos.
Blue Velvet (1987) é um bom
exemplo. Tudo começa com uma orelha encontrada na grama de um parque público. A
câmera mergulha na cavidade auricular para conhecermos um submundo ocultado
pela superfície das cercas cuidadosamente pintadas e flores da frente das casas
em tons pasteis – um submundo para além das aparências da normalidade,
envolvendo o drug-dealler Frank (Denis Hopper) que aspirava através
de uma máscara nitirito de amila para ter prazer sexual e uma galeria de
personagens violentos e caricatos.
O Detetive e a paranoia
Nada é estável, tudo é aparência e
miragem. Como a cantora de cabaré Dorothy Vallens (Isabella Rosellini), o fio
de Ariadne de paixão e culpa que o conduz ao submundo do alucinado vilão Jack.
A atmosfera é neo-noir, de onde
emerge o protagonista Jeffrey (Kyle McLachler), o proto-detetive que mais tarde
retornaria como o agente especial do FBI Dale Cooper, na série Twin
Peaks (1990-91).
O Detetive (no sentido literal e
metafórico) é um protagonista recorrente em David Lynch. Mais do que um
personagem, mas como um verdadeiro arquétipo contemporâneo – aquele que
transforma a sensação de estranhamento e alienação com o mundo (marca constante
dos protagonistas lynchanos) como um mistério que precisa ser desvendado.
Começa a suspeitar que os objetos ao seu redor são ilusórios, precisando,
portanto, discernir entre o realismo das percepções e a insanidade dos sonhos e
alucinações. São personagens que vivem sempre numa espécie de limbo, correndo o
risco de cair de um lado ou para outro.
Em Lynch a paranoia é um elemento chave
do universo de Lynch, como chave de iluminação espiritual. Seus protagonistas
estão sempre perdidos em labirintos obscuros, emaranhados de falsas pistas,
traições, mulheres fatais capazes de usar a própria sensualidade para destruir
a vida dos homens – como o drama do macaquinho Jack (What Did Jack Do?),
suspeito de assassinato, enlouquecido pelos “seios fartos por baixo das penas”
da galinha Toototabon.
Cinema e meditação transcendental
Porém, David Lynch
sempre foi inquieto. Essa relação de alienação e estranhamento não tardaria a
se voltar contra o veículo que transforma os fenômenos do psiquismo em imagem:
o próprio dispositivo cinematográfico.
Tudo começa com Cidade
dos Sonhos, o mergulho psicanalítico nos sonhos de uma jovem atriz que
chega na terra de Hollywood, Los Angeles – um tour de force no emaranhado da
narrativa onírica na cidade onde os sonhos são fabricados no cinema,
entretenimento e audiovisual.
Para Lynch, uma
narrativa onírica somente poderia ser concebida na cidade da indústria dos
sonhos, que se apropriou da grande descoberta dos surrealistas para transformar
em um negócio mercadológico.
Mas é em Império
dos Sonhos que Lynch chega à desconstrução total do dispositivo
cinematográfico - mais de três horas de sequências aleatórias para descobrirmos
que estamos naquilo que em cinema chama-se “narrativa em abismo” (assistimos a
um filme que mostra outro filme sendo construído): todas as sequências fragmentadas,
obscuras e caóticas nada mais eram do que um filme não editado, porque seu
realizador morreu, vítima de uma maldição...
Tanto em Império dos Sonhos quanto em What Did
Jack Do?, David Lynch aplica a lógica onírica na própria linguagem
cinematográfica: jogo, aleatoriedade e ironia em linhas de diálogo caoticamente
desarticuladas como se tivessem sido elaboradas pelo processo criativo
de cut-up (“recorte”) baseado na crença dadaísta da aleatoriedade –
se você colocar três ou quatro ideias desassociadas juntas, podem ser criadas
estranhas relações significativas entre elas. Uma “inteligência inconsciente”
surge desses pareamentos, gerando ideias e associações provocativas.
Para David Lynch, o enigma do psiquismo permanece, porque o próprio veículo que
seria o instrumento para desvendar o segredo dos sonhos (as imagens e o cinema)
é, ele próprio, filmado, editado e montado a partir da mesma lógica onírica –
para Lynch, definitivamente, é impossível um olhar de fora, externo, objetivo,
isto é, racional, científico.
Por
isso, nada é banal para o cineasta. O que marca a sua obra é a sua capacidade
de pegar argumentos tão banais, como em Eraserhead (uma garota
engravida e convida seu namorado para apresentá-lo aos seus pais), para entrar
em zonas de penumbra, revelando o surreal e o fantástico sob a banalidade
cotidiana.
Não é por
menos a sua adesão à meditação transcendental desde 1977, no set de filmagem
de Eraserhead, chegando a criar a “David Lynch Foundation” que visa
disseminar a técnica milenar do guru indiano Mahesh Yogi.
É como
se David Lynch dissesse aos seus fãs: esqueça de tentar encontrar um propósito
ou um sentido nos filmes. Pois tudo o que encontrará é a experiência gnóstica
de estranhamento e alienação. Nem a decodificação freudiana dos sonhos e muito
menos transpor os mundos oníricos para as imagens solucionam o enigma.
Porque
tudo é prisioneiro da linguagem, da razão e do ego. Apenas através da meditação
poderemos silenciar a mente e a linguagem. E ascendermos à gnose, para escapar
da matrix desse mundo.
Que David Lynch tenha a encontrado após a morte.”
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Homenagens de famosos a
David Lynch:
“David Lynch continuará
"alimentando a nossa imaginação". “(...)..."É com infinita
tristeza que tomamos conhecimento do falecimento de David Lynch; perdemos um
artista único e visionário cuja obra influenciou o cinema como poucos antes"
(Festival de Cinema de Cannes).
“Eu adorava os filmes de David. Veludo
Azul (1986), Cidade dos Sonhos (2001) e O Homem Elefante (1980), o definiram
como um sonhador visionário e singular que dirigiu filmes que pareciam feitos à
mão. Eu conheci David quando ele interpretou John Ford em Os Fabelmans (2022).
Aqui estava um dos meus heróis — David Lynch interpretando um dos meus heróis.
Foi surreal e parecia uma cena de um dos próprios filmes de David. O mundo vai
sentir falta de uma voz tão original e única. Seus filmes já resistiram ao
teste do tempo e sempre resistirão” (Steven Spielberg, diretor de cinema ).
“Há 42 anos, por razões além da
minha compreensão, David Lynch tirou-me da obscuridade para protagonizar o seu
primeiro e último filme de grande orçamento. Ele claramente viu algo em mim que
nem eu reconheci. Devo toda a minha carreira e a minha vida à visão dele”(...)
... “O que vi nele foi um homem enigmático e intuitivo com um oceano criativo a
explodir dentro dele. Ele estava em contato com algo que o resto de nós desejava
ter. Sempre achei que ele era a pessoa mais autenticamente viva que já conheci.
David estava em sintonia com o universo e com sua própria imaginação em um
nível que parecia ser a melhor versão do ser humano. Ele não estava interessado
em respostas porque entendia que as perguntas são o motor que nos torna quem
somos. Embora o mundo tenha perdido um artista notável, eu perdi um amigo
querido que imaginou um futuro para mim e me permitiu viajar por mundos que
nunca poderia ter concebido sozinho. Sentirei falta dele mais do que os limites
da minha linguagem podem dizer e do que meu coração pode suportar. Meu mundo
está muito mais cheio porque eu o conheci e muito mais vazio agora que ele se
foi. David, eu permaneço mudado para sempre, e para sempre seu Kale. Obrigado
por tudo”. (Kyle MacLachlan, ator que trabalhou com David Lynch).
Frases de David Lynch:
“Ideias são como peixes. Se quiser
pescar peixes pequenos, pode ficar na água rasa. Mas se quiser pescar o peixe
grande, precisará ir mais fundo. No fundo, os peixes são mais poderosos e mais
puros. São enormes e abstratos. E eles são muito bonitos.”
"Eu amo a
lógica dos sonhos… Tudo pode acontecer e faz sentido."
"É assim que Estados Unidos
é para mim. Há uma qualidade muito inocente e ingênua na vida, e há um horror e
uma doença também. É tudo".
Sugestão de vídeo para assistir:
ADEUS A DAVID LYNCH: O MESTRE DOS
SONHOS
https://www.youtube.com/watch?v=ccHjhIz7pT0
Para ouvir:
David Lynch Film & TV Music
Essentials
https://music.apple.com/pt/playlist/david-lynch-film-tv-music-essentials/pl.d79386ce92a54a5ebb646d14d379067f
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Márcio
José Matos Rodrigues-Psicólogo e Professor de História.
Figura:
https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&q=imagens+de+david+lynch