Um fato importante na História, que certamente é
desconhecido por muitas pessoas, foi a assinatura em Paris, França, de um
documento, por líderes das seguintes nações: Croácia (presidente
Franjo Tudjman), Bósnia-Herzegovina (presidente Alia Izetbegovic) e a
Iugoslávia (presidente Slobodan Milosevic).Na época do acordo a Iugoslávia se
limitava a uma união entre Sérvia e Montenegro. Esse documento foi o Acordo de Dayton (Dayton é uma base no
estado de Ohio onde negociações tinham sido feitas), que oficializava o fim da guerra envolvendo estas nações, fator
que já tinha sido acertado em 21 de novembro de 1995. O presidente Clinton dos
Estados Unidos disse na ocasião: “O povo da Bósnia tem a chance de agora deixar
o horror da guerra para trás e alimentar a esperança de paz."
Por meio do Acordo de Dayton, os representantes das citadas nações que
tinham feito parte da anterior Iugoslávia, concordaram que a Bósnia deveria
continuar existindo, com uma parte croata-muçulmana e outra sérvia. Seravejo, a
capital da Bósnia, permaneceu controlada pelos bósnios. Os sérvios manteriam
Pale, Srebrenica e Zepa. Para que o acordo fosse cumprido, uma força
internacional de paz ficou baseada na Bósnia, com comando dos Estados Unidos,
sob responsabilidade da OTAN.
Dias antes, em 10 de novembro de 1995,a
Federação Bósnio-Croata e a República Bósnia-Herzegovina tinham acordado a
formação da Federação Bósnia-Herzegovina e a definição de um governo de
transição para a cidade de Mostar. E em 12 de novembro croatas e sérvio-bósnios
estabeleceram um acordo-base sobre a Eslovênia Oriental, Barânia e Sírmio
Ocidental.
A assinatura do Acordo de Dayton teve a presença
de dez chefes de Estado e de governo no palácio ChampsElysées. Também estiveram
presentes representantes de aproximadamente 50 países. O presidente da França,
Jacques Chirac, disse em seu discurso de abertura:
"A esperança – que surge agora para todos
os povos da ex-Iugoslávia – não nos deixa esquecer os 200 mil mortos da guerra.
O conflito sangrento tem de ser deixado para trás, mas certamente deixará
feridas no coração da Europa. O restabelecimento duradouro da paz será
sobretudo tarefa dos países da região. Agora, todos os responsáveis devem
partir para o capítulo da reconciliação. E, neste ponto, o exemplo de Adenauer
e De Gaulle podem ser um grande modelo."
Para se entender melhor os acontecimentos
relacionados a intensos ressentimentos que provocaram conflitos étnicos e
políticos até se chegar ao Acordo de Dayton, com a intervenção de potências
estrangeiras, destacarei fatos da história da Iugoslávia e outros logo após sua
desintegração:
1-Segunda Guerra
Mundial: Durante a Segunda Guerra
Mundial, a Iugoslávia, que tinha sido criada em 1929 (existiu antes logo depois
da I Guerra Mundial o Reino dos sérvios, croatas e eslovenos), foi invadida
pela Alemanha nazista que queria controlar a área dos Balcãs. Foram
incentivados pelos nazistas antigos ressentimentos entre povos que habitavam a
Iugoslávia. Também foram formadas milícias fascistas nacionalistas em apoio aos
alemães e seus aliados italianos e búlgaros, que tinham também ocupado a
região. Com as sucessivas derrotas alemãs em 1944 e 1945 em várias partes da
Europa, inclusive na Iugoslávia, o desejo de vingança de determinados grupos e
a busca pelo poder causaram mais violência entre os iugoslavos. Para enfatizar
esta minha explicação, citarei a seguir trechos do livro Continente
Selvagem, do autor britânico Keith Love.
Sobre a formação da Iugoslávia diz o citado
autor:
“...Era assim o ponto de encontro de três
grandes religiões – cristianismo ortodoxo, catolicismo e islamismo (ou quatro,
na verdade, se incluirmos também a pequena minoria judaica que foi quase
aniquilada pela guerra). Era o lar de mais de meia dúzia de grandes minorias
étnicas e nacionais, que gestaram, todas, rivalidades e ciúmes por gerações. Os
dois grupos políticos mais fortes no período entreguerras- os sérvios
monarquistas e o Partido Camponês Croata- discutiram infinitamente se a
Iugoslávia deveria permanecer um reino único e, se assim fosse decidido, quanta
autonomia seria concedida a cada região.”
Sobre a violência na Iugoslávia durante a
Segunda Guerra Mundial, diz o autor:
“A Iugoslávia foi o local da pior violência na
Europa, tanto durante quanto depois da guerra. O que torna a situação única são
as muitas camadas que constituíram o conflito. Grupos de resistência iugoslavos
lutavam não apenas contra agressores estrangeiros em uma guerra de libertação
nacional, mas também contra soldados de seu próprio governo em uma guerra
revolucionária, contra grupos de resistência alternativos em uma guerra ideológica
e contra grupos de bandidos em uma batalha para impor a lei e a ordem. Esses
diferentes filamentos estavam tão entrelaçados que eram frequentemente
indistinguíveis uns dos outros. Mas houve uma ameaça nessa tapeçaria de
violência que se destacou: o ódio étnico. O poder desse ódio foi assumido por
todas as partes na guerra, a despeito de suas diferentes agendas. Quase meio
século antes da guerra civil que faria o termo “limpeza étnica” ser conhecido
em todo o mundo, a Iugoslávia foi envolvida nos estágios finais de um dos
conflitos étnicos mais cruéis do século XX.“
O final dramático da Segunda Guerra Mundial na
Iugoslávia foi assim descrito pelo autor: “ Durante os seis meses finais da
guerra, forças alemãs realizaram uma retirada épica de toda a península
balcânica. Enquanto recuavam através da Iugoslávia em abril de 1945, vários
colaboracionistas, soldados e milícias locais se uniram a eles...” E ainda:
“Como no restante da Europa, muita da violência na Iugoslávia foi motivado por
um simples desejo de vingança (...). E destacou também os aspectos políticos
que se juntaram aos étnicos: “Não há dúvida de que os massacres que ocorreram
na Iugoslávia depois da guerra tinham, ao menos em parte, motivação política.
Como os comunistas estavam concentrados em forçar a Croácia e a Eslovênia a se
unirem novamente a uma federação iugoslava, não fazia sentido em permitir que
dezenas de milhares de nacionalistas croatas pusessem a unificação em risco.
Tito também não poderia permitir que a persistência dos chetniks monarquistas
de Mihailovic pusessem em risco sua visão de uma Iugoslávia comunista”.
2- Ditadura
de Tito e as consequências de sua morte:
O carisma, a habilidade política em reduzir a
influência da Croácia e da Sérvia, sua postura centralizadora em sua pessoa,
fizeram de Tito, o presidente da República Socialista Federativa da Iugoslávia,
uma figura que foi capaz de conter os ressentimentos étnicos na Iugoslávia após
a Segunda Guerra Mundial. Porém sua morte provocou um vácuo de poder que deu
espaço ao reaparecimento dos conflitos entre os povos e o fortalecimento de
discursos de tendência nacionalista extremista. Um fator externo que
influenciou na Iugoslávia anos após a morte de Tito foi o fim do bloco
socialista do leste europeu formado por países do Pacto de Varsóvia. A época,
envolvendo o final dos anos 80 e o início dos anos 90, destacou-se pelo
posicionamento separatista de lideranças de povos que faziam parte da
Iugoslávia. A força política dos sérvios sobre outras repúblicas causava
descontentamento entre as outras etnias. Também outro fator considerável para a
dissolução da Iugoslávia era o desejo da Croácia e da Eslovênia, que tinham um
desenvolvimento econômico maior, de terem autonomia, o que não era bem visto
pela Sérvia. Tito havia deixado uma orientação de rodízio de poder entre as
repúblicas, no entanto após sua morte essa política não foi bem sucedida.
Houve, em janeiro de 1990, um congresso do
Partido Comunista da Iugoslávia na capital, Belgrado. Nesse congresso
decidiu-se instalar um regime multipartidário no país. Mas o líder sérvio
Milošević tinha posições resistentes em relação a reformas propostas pelas
delegações da Eslovênia e da Croácia, que se retiram do congresso, o que causou
a dissolução do partido. O próximo presidente da Iugoslávia deveria ser o
croata Stipe Mesic. Porém os sérvios não permitiram sua posse, desconfiados de
que um presidente croata atendesse as solicitações de croatas e eslovênios, que
queriam uma nova confederação.
3- Guerra
Civil:
Os primeiros a se mobilizarem para formaram uma
nação fora da Iugoslávia foram os eslovenos. Essa movimentação dos eslovenos
pela independência motivou outros povos a fazerem o mesmo. Os eslovenos
declararam sua independência em junho de 1991. Houve uma guerra curta de dez
dias e então o governo iugoslavo retirou suas forças do território esloveno.
Tais forças passaram a se direcionar para uma outra região que possivelmente
lutaria pela separação: a Croácia.
Os croatas, influenciados pela independência dos
eslovenos e não querendo ficar sob o domínio sérvio mobilizaram-se, mas havia
um aspecto importante a considerar: uma quantidade significativa de pessoas de
origem sérvia habitava a Croácia. O líder da Sérvia, Slobodan Milosevic,
fomentava entre os sérvios o ideal de uma “Grande Sérvia”. Assim, os sérvios
que habitavam a Croácia fizeram uma declaração de separação do território
croata para se unirem à Sérvia. Começava aí a guerra entre sérvios e croatas.
Durante essa guerra, o movimento pela independência da Bósnia cresceu. Na época
existiam na Bósnia 31% de sérvios e 17% de croatas. Os muçulmanos da Bósnia
queriam a independência da Bósnia-Herzegovina. Os sérvios queriam anexar
territórios onde eles moravam à Sérvia. Os croatas queriam anexar os locais
onde habitavam à Croácia. O líder nacionalista sérvio na Bósnia era Radovan
Karadzic, que assumiu um posicionamento forte contra a separação da Bósnia em
relação à Iugoslávia. Em setembro de 1991 foi oficializada a independência da
Eslovênia e da Croácia.
A independência da Bósnia foi declarada em março
de 1992. Em abril os sérvios começaram seus ataques em Seravejo, que foi
cercada pelo exército sérvio. Houve então massacres realizados por milícias
sérvias contra a população muçulmana da Bósnia. Tais ataques foram considerados
por observadores internacionais como limpeza étnica. Também foram criados campos de concentração pelos sérvios onde havia violações de direitos humanos, como os
estupros de mulheres bósnias. Alguns ataques também foram feitos por forças da Bósnia contra
comunidades sérvias, em escala muito menor. O cenário lembrava os tenebrosos
fatos da Segunda Guerra Mundial.
Os croatas conseguem
vencer em seu próprio território e iniciam uma ofensiva contra os sérvios na
Bósnia. Em 1995 a OTAN realiza bombardeios contra os sérvios. O líder sérvio
Milosevic concorda então a negociar em Dayton, colocando fim na guerra da
Bósnia e assim a ONU suspende parcialmente as sanções econômicas contra a
Sérvia.
Embora o Acordo de
Dayton tenha terminado com os conflitos envolvendo Sérvia, Bósnia e Croácia,
novos combates aconteceriam em territórios da antiga Iugoslávia. Houve atritos
entre macedônios (a Macedônia também tinha se separado da Iugoslávia) e sérvios
sulistas e o conflito no Kosovo (1998-1999). O presidente Milosevic, um grande
incentivador dos conflitos entre os sérvios e os outros povos, é afastado do
poder em setembro de 2000 e em abril de 2001 é preso, acusado de corrupção e
abuso de poder. Depois veio a morrer na prisão. As consequências da guerra dos anos 90 foram
centenas de milhares de mortos e feridos, cidades destruídas, aumento da
criminalidade e graves problemas econômicos em territórios da antiga
Iugoslávia.
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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História
Figura:
https://www.google.com/search?sxsrf=ALeKk02BjVtrNsaQ2kjXnqvS9DseTQ9DMQ:1608069330541&source=univ&tbm=isch&q=figura+do+acordo+de+dayton
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