sábado, 28 de novembro de 2020

Aniversariante do mês de novembro e figura de destaque na República no Brasil: Ruy Barbosa

 


 



Sendo novembro o mês da data da proclamação da República e  Ruy Barbosa uma figura importante da república no Brasil como também um aniversariante de novembro, resolvi escrever sobre este notável intelectual brasileiro neste mês de novembro de 2020. 

Ruy Barbosa de Oliveira nasceu em 5 de novembro 1849, em Salvador, na Bahia.   Ele foi um erudito, uma pessoa que dominava vários assuntos, tendo sido jurista, advogado, diplomata, escritor, filólogo, tradutor, orador e participou da vida política nacional como ministro, deputado e senador. Participou do início do governo republicano quando Deodoro da Fonseca foi presidente e também foi coautor da Constituição da Primeira República. Foi abolicionista e defendia o federalismo, como também os direitos e garantias individuais.. Como ministro da Fazenda teve responsabilidade na crise chamada de Encilhamento. Inspirando-se na bandeira dos Estados Unidos, criou o primeiro modelo da bandeira republicana brasileira, que depois de quatro dias foi substituída pelo modelo atual. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, ocupando a presidência de 1908 a 1919. Na II Conferência da Paz em Haia, na Holanda, ficou conhecido por defender o princípio da igualdade dos Estados. O Barão do Rio Branco, elogiando a atuação de Ruy o chamou de "O Águia de Haia”. 

Os seus pais foram João José Barbosa de Oliveira, que participou da política baiana e de Maria Adélia Barbosa de Oliveira. Mesmo sendo envolvido na política local, o pai de Ruy passou em certa época por dificuldades financeiras, precisando do apoio de Maria Adélia, que vendia doces caseiros para conseguir um sustento para a família. O seu pai tinha um aliado político forte, Manuel de Sousa Dantas, que foi o padrinho político de Ruy Barbosa. Ruy iniciou sua carreira como advogado em 1872, em Salvador. Já com cinco anos Ruy começou a se destacar. O seu professor Antônio Gentil Ibirapitanga comentou: "Este menino de cinco anos de idade é o maior talento que eu já vi. […] Em quinze dias aprendeu análise gramatical, a distinguir orações e a conjugar todos os verbos regulares". Quando estudava no Ginásio Baiano de Abílio César Borges, recebeu uma medalha de ouro do Arcebispo da Bahia. Em 1864 iniciou estudos de alemão.

Em 1866, Ruy entrou na Faculdade de Direito do Recife. Em 1868, juntamente com seu colega de faculdade Castro Alves, transferiu-se para São Paulo para concluir o curso lá. Em 1868, após a queda do gabinete do primeiro ministro Zacarias de Gois, Ruy homenageou o professor de Direito, abolicionista liberal e deputado José Bonifácio, o Moço. Ruy discursou em 1869 para homenagear os soldados que voltavam da Guerra do Paraguai e na ocasião conclamou o Exército para se unir à causa da abolição da escravatura. Ainda nesse ano realizou uma conferência que se chamou "O Elemento Servil", dizendo que a escravidão era ilegal, baseando-se na Lei Feijó, de 1831. Fez publicar no jornal Radical Paulistano, fundado juntamente com Luís Gama, o seu primeiro manifesto abolicionista. Obteve a graduação em Direito em São Paulo em 1870 e então retornou à Bahia.  Começou seus trabalhos na tribuna popular defendendo um escravo contra seu senhor, sendo que ainda era um estudante, em 1869.

 Ruy teve momentos de tensão psicológica pouco antes de se formar em São Paulo. Ficou  em repouso por um ano em Salvador e foi trabalhar no escritório de advocacia de Souza Dantas, em 1872. Foi nesse ano que ele começou a colaborar para o jornal Diário da Bahia . Em 1873 passou a ser diretor do jornal e a conferência dele no Teatro São João sobre “eleição direta” foi muito aplaudida.

Casou-se em 1876 com  Maria Augusta Viana Bandeira,  com quem teve cinco filhos, tornou-se deputado na Assembleia da Bahia em 1877 e foi eleito deputado em 1878 à Assembleia da Corte. Promoveu a Reforma Geral do Ensino em 1881. Não aceitou em junho de 1889 o convite para integrar o Gabinete Ouro Preto. O artigo de Ruy, Plano contra a Pátria, foi muito elogiado pelo líder republicano Benjamim Constant. Em 15 de novembro de 1889 Ruy Barbosa elaborou o primeiro decreto do governo provisório e foi nomeado ministro da Fazenda no governo de Deodoro da Fonseca.

Em 1890 foi elogiado pelo monarca deposto, Dom Pedro II que disse:  "Nas trevas que caíram sobre o Brasil, a única luz que alumia, no fundo da nave, é o talento de Ruy Barbosa”. E nesse ano Ruy fez os decretos de reforma bancária. O seu ato de mandar os livros de matrícula de escravos existentes nos cartórios das comarcas e registros de posse e movimentação patrimonial envolvendo todos os escravos foi justificado por ele que disse que quis apagar a apagar "a mancha" da escravidão do passado nacional. Porém, segundo alguns críticos, o que Ruy pretendeu foi  tornar inviável o cálculo de eventuais indenizações que vinham sendo pleiteadas pelos antigos proprietários de escravos. A crise chamada “encilhamento”, ocorreu durante o período em que Ruy foi Ministro da Fazenda, entre 1889 e 1891. A emissão descontrolada de moeda pelo governo, assim como as ações de empresas criadas que logo perderam o valor causaram uma inflação alta. Foi nomeado primeiro vice-chefe do Governo Provisório. Ideias de Ruy tiveram influência na Constituição de 1891.

Quando se encontrou com Dom Pedro II em Paris lamentou os rumos que a República havia tomado no Brasil, mostrando decepção. Em 1892 abandonou a bancada do Senado e dias depois disse em forma de manifesto à nação:  "Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação. Eu ouso dizer que este é o programa da República”.  Fez oposição à Floriano Peixoto, tendo defendido cidadãos oposicionistas ao governo desse presidente e por meio da imprensa fez campanha contra o governo florianista, sendo que em 1893 foi obrigado a se exilar.

Ficou em quarto lugar para presidente na eleição de 1894. Esteve em Buenos Aires e depois em Londres e lá escreveu Cartas da Inglaterra para o Jornal do Comércio em 1895. Em 1895 disse em um texto para a imprensa: : "E jornalista é que nasci, jornalista é que eu sou, de jornalista não me hão de demitir enquanto houver imprensa, a imprensa for livre…"

Criticou a intervenção militar em Canudos e foi citado por Joaquim Nabuco em seu livro Minha Formação: "Ruy Barbosa, hoje a mais poderosa máquina cerebral do nosso país”. Ruy,  em 3 de abril de 1902, publicou um parecer crítico ao projeto do Código Civil.

Desistiu de se candidatar à presidência em 1905 e resolveu apoiar Afonso Pena. Foi muito elogiada sua participação na Conferência de Haia, na Holanda em 1907. Segundo o jornalista Willian Thomas Stead: "As duas maiores forças pessoais da Conferência foram o Barão Marschall da Alemanha e o Dr. Barbosa, do Brasil... Todavia ao acabar da conferência, Dr. Barbosa pesava mais do que o Barão de Marschall”. Ruy defendia que todas as nações são iguais e soberanas considerando-se a ordem jurídica internacional.

Em 1909 e 1910 foi responsável pela campanha civilista, mais uma tentativa de ser eleito presidente. Como Ruy era civil e seu adversário, Hermes da Fonseca, era militar, a campanha ficou conhecida como civilista. Ruy era candidato por São Paulo. A campanha ficou conhecida pela realização de comícios e discursos de Rui em cidades pelo país. Havia um programa de governo destacando a necessidade de modernização da economia do Brasil. Ele tentava uma aproximação com vários setores da sociedade, incluindo a classe média e os trabalhadores. Ruy foi um inovador nesse tipo de campanha, utilizando cartazes e “santinhos”. Ele venceu em grandes centros urbanos (Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro), mas o Brasil da época ainda era muito rural e Hermes da Fonseca acabou sendo vitorioso com o apoio de muitos dos chamados coronéis, que dominavam a política no interior do Brasil e utilizavam o voto de cabresto.

Ruy defendeu os interesses do Paraná na Guerra do Contestado e foi advogado da Lumber, empresa de Percival Farquhar, que estava envolvida na colonização e exploração de madeira, aspectos ligados à construção da ferrovia São Paulo- Rio Grande, atividades que causaram diversos problemas sociais na região do Contestado, contribuindo fortemente para conflitos sangrentos na referida região. Muitas vezes Ruy foi um defensor de causas humanistas. Por que então apoiou os interesses de um empresário norte-americano expansionista? Não devemos esquecer que Ruy se identificava com um liberalismo capitalista que pregava um modernismo industrializante. Ele acreditava que o Brasil deveria tomar modelos capitalistas ocidentais como exemplos e assim podemos perceber que, quando foi ministro da Fazenda e sua política econômica levou ao Encilhamento, ele buscava uma rápida industrialização do Brasil que o aproximasse mais de grandes nações industriais. 

Em dezembro de 1913 Ruy lançou o “Manifesto à Nação”, renunciando à candidatura à presidente pelo Partido Republicano Liberal. Em 1914 Ruy foi eleito presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, em 1917 recebeu o título de professor honoris causa da Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Buenos Aires. Fez um discurso chamado O Dever dos Neutros, no qual dizia que a neutralidade não devia ser confundida com indiferença e impassibilidade, demonstrando apoio aos países aliados contra a Alemanha, citando como exemplo o caso da neutra Bélgica que tinha sido invadida pelos exércitos alemães em 1914. As ideias dele, em relação a essa questão da postura de países diante da guerra influenciaram a política externa brasileira na época e ele participou de protestos contra o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães. Após esses fatos, o presidente do Brasil, Venceslau Brás, revogou a neutralidade brasileira em relação à guerra em junho de 1917, colocando o Brasil em posição a favor dos aliados.  Em 1918, o ministro francês Paul Claudel, entrega a Ruy as insígnias da Ordem Nacional da Legião de Honra.

Ruy concorreu em abril de 1919 pela quarta e última vez à Presidência da República, sendo derrotado pelo paraibano Epitácio Pessoa. Diante da intervenção do governo federal na Bahia, Ruy recusa o convite de representar o Brasil na Liga das Nações, durante a Conferência de Versalhes. Desapontado com acontecimentos da vida política brasileira, como por exemplo a intervenção na Bahia, Ruy renuncia ao cargo de senador. Mas decide voltar e em junho de 1921 é reeleito pela Bahia como senador, iniciando de novo sua luta por uma revisão constitucional.

Ruy faleceu em Petrópolis, aos 73 anos de idade, em primeiro de março de 1923, tendo tido graves problemas de saúde desde julho de 1922 quando sofreu um edema pulmonar. Suas últimas palavras foram: "Deus, tende compaixão de meus padecimentos". Foi sepultado em um mausoléu no Cemitério de São João Batista, na cidade do Rio de Janeiro, mas no centenário de seu nascimento em 1949 seus restos mortais foram levados para a cidade de Salvador. Deixou pronta para seu epitáfio a seguinte frase: "Estremeceu a Justiça; viveu no Trabalho; e não perdeu o Ideal".

Foi homenageado por seu discípulo João Mangabeira, em 5 de novembro de 1924 com o seguinte discurso:  

 “Na data de hoje, sr. Presidente, na capital da Bahia,(…) nasceu Ruy Barbosa. (…) Recordando a figura do grande evangelista que com a pena e com a tribuna, irradiando e bramindo, nas vanguardas, a peito aberto, no alto jornalismo de combate, nos comícios populares, nas casas do Parlamento, nos pretórios; nas assembleias internacionais, em toda a parte primus inter pares a eloquência, de mãos dadas com a bravura, robustecida pela abnegação e animada pela fé, não precisou de outras armas, para servir, por mais de meio século construindo, deslumbrando, (…) dominando as opiniões que dirigia, às Letras, ao Direito, à Liberdade.

Enriqueceu a língua portuguesa, pela palavra falada e pela escrita, com as mais belas obras de arte. Em Haia e em Buenos Aires, para um auditório que era a humanidade, falou, por idiomas estrangeiros, em alocuções imortais que comoveram o Universo, a linguagem das mais lídimas aspirações humanas. Nunca fraqueou ante a injustiça, ante a ingratidão, ante os revezes. Nunca se acobardou ante o perigo. (aplausos)

(…) Construtor, por excelência, da República, foi principalmente na República, franzino e débil no corpo, quão rijo, e forte, e valoroso no espírito, a ponta de platina, impávido a receber e a desviar(…) a eletricidade das tormentas.

(…) Feliz do povo que estremecer a justiça! Feliz do povo que viver no trabalho! Sobretudo, sr. Presidente, feliz do povo que não perder o ideal.

(…) Volvamos o nosso espírito para a tranquilidade onde repousa o magno sacerdote da nossa democracia, o grande semeador a quem devemos os frutos mais excelentes do nosso liberalismo constitucional. Para que seu fulgor nos ilumine! Para que o seu exemplo nos ampare!

(…) Para que desçam, portanto, sobre o coração e a consciência dos que se digladiam no Brasil, ao sol das lutas políticas, a misericórdia, a clemência, as inspirações do Senhor!

 

 Sobre Ruy Barbosa escreveu o cientista político Bolívar Lamounier, na Revista Época em seu artigo “Um liberal entre autoritários”:


“Ruy Barbosa foi um protagonista intelectual e político de primeiro plano na transição do Império para a República. Apaixonado pela causa abolicionista e pelo federalismo, converteu-se à ideia republicana quando sentiu que a monarquia centralizadora acabaria por levar o Brasil a conflitos regionais cada vez mais graves e eventualmente à desagregação. Proclamada a República, foi o principal redator da Constituição, mas não hesitou em se tornar o mais veemente defensor da revisão constitucional, ao perceber os excessos federalistas do texto de 1891. Atento à ameaça que o militarismo e o mandonismo oligárquico representavam para a nascente república, deu-lhes incansável combate. Valeu-se para tanto de sua tríplice condição de advogado, jornalista e senador. Concorreu quatro vezes (sem êxito) à Presidência da República, em 1905, 1910, 1913 e 1919...

 

Principais obras:

  • Visita à Terra Natal
  • 'Figuras Brasileiras
  • Contra o Militarismo
  • Correspondência de Ruy
  • Mocidade e Exílio
  • Castro Alves: Elogio do Poeta pelos Escravos
  • O Papa e o Concílio
  • O Anno Político de 1887
  • Relatório do Ministro da Fazenda
  • Finanças e Políticas da República: Discursos e Escritos
  • Os Atos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal
  • Cartas de Inglaterra
  • Anistia Inversa: Caso de Teratologia Jurídica
  • Posse dos Direitos Pessoais
  • O Código Civil Brasileiro
  • Discurso
  • O Acre Septentrional
  • Actes et discours. La Haye: W.P. van Stockum et Fils
  • O Brasil e as Nações Latino Americanas na Haia
  • O Direito do Amazonas ao Acre Septentrional
  • Excursão Eleitoral aos Estados da Bahia e Minas Gerais: Manifestos à Nação
  • Plataforma
  • Ruy Barbosa na Bahia
  • O Dever do Advogado
  • O Sr. Ruy Barbosa, no Senado, responde às insinuações do Sr Pinheiro Machado
  • Problemas de Direito Internacional. Londres: Jas.Trucott&Son.
  • Conferência. Londres: Eyre and Spottiswoode Ltda.
  • Oswaldo Cruz
  • Oração aos Moços
  • O Processo do Capitão Dreyfus

 

Algumas frases de Ruy Barbosa:

 

“A liberdade não é um luxo dos tempos de bonança; é, sobretudo, o maior elemento de estabilidade das instituições.”

“Maior que a tristeza de não haver vencido é a vergonha de não ter lutado!”

“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”

“A força do direito deve superar o direito da força.”

“A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta.”

“Não é a terra que constitui a riqueza das nações, e ninguém se convence de que a educação não tem preço.”

“A injustiça, por ínfima que seja a criatura vitimada, revolta-me, transmuda-me, incendeia-me, roubando-me a tranquilidade e a estima pela vida.”

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História

 

 

Figura:

https://www.google.com/search?q=imagem+de+ruy+barbosa&sxsrf=ALeKk03WazzCIrpd1bydiajmSnsUnbGn0w:1606600118937&tbm=isch&source


sábado, 14 de novembro de 2020

A Ferrovia São Paulo-Rio Grande, o empreendimento de Percival Farqhar no Sul e a Guerra do Contestado

 




Este artigo é sobre a ferrovia São Paulo-Rio Grande, ligando o Estado de São Paulo ao Estado do Rio Grande do Sul, procurando debater sobre as consequências sociais e ambientais da instalação dessa ferrovia.

Em 1887, o governo imperial havia solicitado um projeto de estrada de ferro para ligar a cidade de Itararé em São Paulo até Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Com essa ligação ficariam assim interligadas as províncias de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Também seria facilitada a ligação de todas estas províncias com a capital do país, Rio de Janeiro.

Foi em abril de 1904, já na República, que a ferrovia chegou às margens do Rio Iguaçu, na divisa entre Paraná e Santa Catarina. A  parte que envolvia o Paraná e a parte gaúcha entre o rio Uruguai e Santa Maria estavam em operação, mas faltava um trecho catarinense. Nessa ocasião a Companhia EFSPRG estava com muitos custos e não se começou as obras em Santa Catarina no prazo estipulado.

É quando entre em cena o empresário norte-americano, Percival Farqhar, que em 1908 passou a controlar a concessão da Companhia Estrada de Ferro São Paulo- Rio Grande (EFSPRG), integrada à holding Brazil Railway Company, criada em 1906 em Miami, nos Estados Unidos para controlar as aquisições ferroviárias de Farqhar. Um decreto do governo brasileiro tinha dado em 1907 um prazo à EFSPRG para concluir o trecho catarinense em três anos. E o povoamento de terras próximas à ferrovia tinha de ser feito por empresas.  

No ano de 1907 Farqhar estava se empenhando em construir o Porto de Belém do Pará por meio de  sua empresa Port of Pará; procurando fazer a integração ferroviária no sul do país com a Brazil Railway; dando início à colonização da região do Contestado com a sua empresa Southern Brazil Lumber & Colonization Company; fazendo obras no porto de Rio Grande; dando os primeiros passos para construir a Madeira-Mamoré na Amazônia e ele era proprietário da Light Salvador e a Ligth Rio de Janeiro.

No Sul, em suas obras ferroviárias, Farqhar recruta mais de 8 mil trabalhadores braçais oriundos de vários lugares como São Paulo, Rio de Janeiro e do Nordeste. Mas também vieram outros de outros países. Entre os trabalhadores havia estivadores e mesmo até ex-detentos. Os empreiteiros é que deveriam proceder ao pagamento dos trabalhadores.

O que se pretendia com esta integração ferroviária? Existiam objetivos ligados à economia e aos aspectos militar, territorial e demográfico. No tocante ao fator econômico havia o interesse na exportação da madeira e na exploração da erva-mate, produtos de Paraná e Santa Catarina. A ferrovia serviria para escoar a produção aos portos. Também existia o interesse de venda de terras a colonos estrangeiros. Na parte militar, dar mais segurança à região Sul que tinha limites com Paraguai e Argentina, países com os quais o Brasil já estivera envolvido em conflitos no tempo do Império. Na questão demográfica, pretendia-se ter mão de obra para novas atividades econômicas. Todos estes aspectos estavam inseridos na questão maior que era a mudança para uma economia mais mercantil.

A ferrovia ajudava o capitalismo a se expandir e assim foi afetada a economia de subsistência de populações locais em áreas como o Campo de Palmas. Essa expansão levou a uma drástica redução da economia de subsistência e o extermínio de populações indígenas.

Farquhar foi ampliando seu domínio sobre outras ferrovias formando uma ampla rede ferroviária no Paraná e Santa Catarina. As ferrovias paranaenses e catarinenses deste empresário formam em 1910 a Rede de Viação Férrea Paraná-Santa Catarina. O empresário pretendia por meio da EFSPRG  explorar a madeira e erva-mate ao longo da ferrovia e ter terras disponíveis para colonização. Assim, visando estes objetivos ele tinha fundado a Southern Brazil Lumber & Colonization Company, mais conhecida como Lumber. Foram montadas duas serrarias, uma em Calmon e outra em Três Barras (a maior da América Latina). Para a efetivação da colonização foi criada pelo empresário a Brazil Development & Colonization Company, que recebeu 569.057 hectares de terra e que também transferia concessões para outras empresas. Em outubro de 1910, dentro do prazo que o governo federal tinha imposto, foi concluído todo o trecho que faltava.

Farquhar tinha planos de construir uma malha ferroviária que interligasse os principais países da América do Sul. E em relação à colonização na região do Contestado, ele queria povoar as terras ao longo da ferrovia para ter a garantia de que em alguns anos houvesse um movimento de pessoas e mercadorias que tornasse viável a operação ferroviária.

Em região catarinense atingida pela ferrovia, havia uma questão de terras entre os Estados de Santa Catarina e Paraná. Havia a reivindicação pelo governo paranaense de todo o território oeste catarinense, alegando que essas terras faziam parte de seu território. Somente em 1916 Santa Catarina ganhou a causa.

No meio de disputas envolvendo a expansão capitalista nos limites entre Paraná e Santa Catarina existiu a Guerra do Contestado (1912-1916), na qual forças militares e grupos armados de fazendeiros locais combateram a população empobrecida da região. Muitos membros dessa população tinham sido expulsos de suas terras para o projeto de colonização capitalista. Também a eles se juntaram milhares de trabalhadores desempregados da ferrovia. Surgiu na época um líder religioso que era um símbolo para este povo, o chamado monge José Maria e quando ele morreu, no início dos conflitos, outras lideranças surgiram e a influência religiosa persistiu. Depois de 4 anos a guerra causou a morte de aproximadamente 10 mil pessoas entre civis e militares, a estação de Calmon da Brazil Railway foi queimada e saqueada, ficando a companhia com muitas dificuldades para continuar com as viagens em  operação na ferrovia.

Em julho de 1917 o truste (empresas) de Farquhar entrou em concordata. O que não acabou com as ferrovias no sul do Brasil, que passaram a ter outros controles. A Lumber e a Brazil Development continuaram por mais um tempo sendo controladas por Farquhar. Mas no governo Vargas foram estatizadas em  1938.

No projeto do governo republicano percebe-se todo uma intenção de expansão do capitalismo no Sul do Brasil, o que acabou envolvendo um grande empresário estrangeiro que tinha sonhos de Cecil Rhodes (um poderoso explorador capitalista britânico na África, na segunda metade do século XIX,  que anexou vastas áreas territoriais, explorou intensamente recursos minerais, mesmo com o sofrimento de muitas populações locais). Esse projeto, se por um lado promoveu o desenvolvimento de atividades empresariais e o incentivo a uma economia de mercado no sul do Brasil, por outro lado revelou-se perverso com as populações locais, relegadas à uma situação de marginalização, assim como um desprezo pelos trabalhadores desempregados após a conclusão de obras na ferrovia. Também iniciou-se uma ampla exploração madeireira que durou por décadas, causando uma grande destruição da mata de araucária, hoje restando apenas uma pequena percentagem da mata original, um resquício que ainda se encontra em perigo, como por exemplo no caso de um projeto de linha de energia que levaria à morte milhares de árvores (projeto por enquanto suspenso por decisão judiciária).

A revolta dessa massa empobrecida e desamparada, animada por desejos místicos em busca de condições melhores de vida, foi tragicamente esmagada após o uso de tropas estaduais e federais, como também de jagunços de fazendeiros locais, proprietários rurais poderosos que se inseriam no sistema econômico da região. Vê-se na forma que a República agiu com sua população mais pobre, constituída em grande parte por índios, mestiços e negros uma semelhança com a ação militar em Canudos, quando também milhares de camponeses humildes e com crenças místicas foram massacrados. Essa era a República dos fazendeiros, a República Oligárquica, na qual o voto de cabresto e o coronelismo dominavam. Mas observando bem nosso presente, não vemos ainda alguma herança desses tempos?


Sugestão de vídeo: A Guerra dos Pelados    https://www.youtube.com/watch?v=KnSvUJP0tr4

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História

 

 


Figura:    https://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&tbm=isch&sxsrf=ALeKk01DH0hDFS7sYaMhApm1jZJZk1hMFQ%3A1605418284379&source=hp&biw=1034&bih=620&ei=LL2wX8ObFfjW5OUPz9uP-AM&q=guerra+do+contestado+fig


sábado, 7 de novembro de 2020

Aniversariante de Novembro: A escritora Cecília Meireles

 





No dia 7 de novembro de 1901, na cidade do Rio de Janeiro, nasceu a jornalista, poeta, pintora, escritora e professora Cecília Benevides de Carvalho Meireles. Seu pai era o funcionário do Banco do Brasil Carlos Alberto de Carvalho Meireles e sua mãe Mathilde Benevides Meireles, professora da rede pública de ensino fundamental (na época era chamado ensino primário). Ambos eram portugueses dos Açores. Considerada por muitos como a melhor poeta do Brasil e um dos grandes nomes da poesia na língua portuguesa.

Seu estilo como poeta foi em grande parte neossimbolista. Houve forte influência da psicanálise em obras suas de caráter intimista e com foco em aspectos sociais. Suas poesias estavam muito voltadas para o tempo efêmero e vida contemplativa. Ela é conhecida pelo vanguardismo nacionalista, na segunda fase do modernismo brasileiro, entre os poetas consolidadores da “Poesia de 30”. Como jornalista escreveu muito sobre a educação e também sobre viagens que fez ao exterior. Era uma defensora de reformas educacionais e da construção de bibliotecas infantis.

Seu pai morreu três meses antes do nascimento de Cecília e quando tinha três anos de idade, ela perdeu sua mãe, passando a morar com sua avó materna, Jacinta Benevides, natural dos Açores, arquipélago de Portugal, e que era viúva. Ao concluir o ensino fundamental em 1910  Cecília recebeu do poeta Olavo Bilac uma medalha de ouro pelo seu excelente desempenho nos estudos. Ela naquela época  já demonstrava gostar muito de ler e tinha começado a escrever seus primeiros versos, como também começava a estudar canto, violão e violino no Conservatório Nacional de Música. Mas depois preferiu se dedicar exclusivamente à literatura.  Como sua avó não a deixava brincar fora de casa com outras crianças, ela habituou-se a dois pontos, que, segundo ela dizia, a influenciaram como escritora: "a solidão e o silêncio".

Formou-se em 1917, aos dezesseis anos de idade na Escola Normal do Distrito Federal (Rio de Janeiro). Um de seus professores foi o poeta Osório Duque Estrada. Foi a oradora de seu grupo de formatura. Depois de sua formatura começou a lecionar em 1918. Em outubro de 1922 casou-se com o pintor,  ilustrador e desenhista português Fernando Correia Dias e com ele teve três filhas. Por meio do marido pôde ter contato com o movimento poético português do início do século XX. As dificuldades financeiras afetavam muito o casal. Nesse tempo Cecília passou a escrever sobre educação no jornal Diário de Notícias. Também ela colaborava com a revista luso-brasileira Atlântico. Ela se mostrou interessada com a qualidade de ensino e preocupada com a falta de livros didáticos e então escreveu livros para escolas primárias, tendo publicado em 1924 o livro infantil Criança, Meu Amor, voltado para o ensino fundamental. O livro foi adotado na cidade do Rio de Janeiro, em Minas Gerais e Pernambuco.

Seu primeiro livro de poemas Espectros, foi publicado em 1919, quando tinha 18 anos, com temas históricos, lendários, mitológicos e religiosos.

Em fevereiro e março de 1923  publicou  Nunca mais... E Poema dos Poemas, com vinte e um poemas e seis sonetos, que tinha  caráter simbolista e com ilustrações de seu marido. Em 1925 publicou poemas que tinha escrito em 1922 no livro Baladas para El-Rei, também com ilustrações de seu marido.

Em 1930 defendeu a tese "O Espírito Vitorioso” na primeira etapa de um concurso promovido pela Escola Normal para a vaga de professor catedrático. Na tese defendia “a escola moderna”, com destaque para os seguintes pontos: liberdade, inteligência, estímulo à observação e à experimentação. Foi aprovada para a segunda fase, mas na prova prática perdeu a vaga para um concorrente. No início dos anos 30 Cecília publica várias obras e traduções, faz pesquisas históricas e visita países como Argentina, Bélgica, Holanda, Estados Unidos, Israel, Índia e tem obras suas traduzidas para idiomas como o alemão, espanhol, inglês, italiano etc.  Em 1934, ela funda a primeira Biblioteca Infantil do Brasil, no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro. Lecionou Literatura Luso-Brasileira e  Técnica e Crítica Literária de 1935 a 1938 na Universidade do Distrito Federal. Nos Estados Unidos, em 1940, deu curso de literatura e cultura brasileira na Universidade do Texas, em Austin. Nos anos 40 viajou pela México, Chile, Uruguai e Argentina. Em 1951 esteve na França, Bélgica, Holanda e nos Açores. No mesmo ano se aposenta do cargo de diretora da Prefeitura do Distrito Federal. Em 1953, à convite do governo da Índia, participa de um congresso sobre Gandhi em Goa e na capital indiana recebeu o título de Doctor honoris causa por suas traduções do poeta, romancista, músico e dramaturgo Tagore. Esteve novamente na Europa em 1954 e em 1958 visitou Israel.

Cecília teve problemas com a política da época. Ela fazia críticas a Getúlio Vargas, a quem chamava de “O Ditador”. Em 1937 autoridades mandaram fechar a biblioteca que ela tinha fundado por motivo de denúncias de que existiriam lá obras suspeitas. A razão principal foi a presença da obra As Aventuras de Tom Sawyer, do escritor Mark Twain, dos Estados Unidos.

Seu marido Fernando Correia Dias sofria de depressão e suicidou-se em 1935. Cinco anos depois da morte do primeiro marido, casou-se  com o engenheiro agrônomo Heitor Vinícius da Silveira Grilo .

Cecília foi uma estudiosa, tendo aprendido várias línguas como inglês, francês, italiano, russo, hebraico e dialetos do grupo indo-iraniano. Traduziu para o português obras de Tagore, Charles Dickens, François Perroux, Alexandre Pushkin, Rainer Maria Rilke, Virginia Woolf, Garcia Lorca a antologias de poesia hebraica e chinesa.

 A partir de 1962 começa a sofrer de um câncer no estômago e vem a falecer em 9 de novembro de 1964, aos 63 anos, na cidade do Rio de Janeiro.

Estas são algumas das obras de Cecília Meireles que foram publicadas

  • Espectros, 1919
  • Criança, meu amor, 1923
  • Nunca mais, 1923
  • Poema dos Poemas, 1923
  • Baladas para El-Rei, 1925
  • O Espírito Vitorioso, 1929
  • Saudação à menina de Portugal, 1930
  • Batuque, samba e Macumba, 1933
  • A Festa das Letras, 1937
  • Viagem, 1939
  • Olhinhos de Gato,1940
  • Vaga Música, 1942
  • Poetas Novos de Portugal, 1944
  • Mar Absoluto, 1945
  • Rute e Alberto, 1945
  • Rui — Pequena História de uma Grande Vida, 1948
  • Retrato Natural, 1949
  • Problemas de Literatura Infantil, 1950
  • Amor em Leonoreta, 1952
  • Doze Noturnos de Holanda e o Aeronauta, 1952
  • Romanceiro da Inconfidência, 1953
  • Poemas Escritos na Índia, 1953
  • Batuque, 1953
  • Pequeno Oratório de Santa Clara, 1955
  • Pistoia, Cemitério Militar Brasileiro, 1955
  • Panorama Folclórico de Açores, 1955
  • Canções, 1956
  • Giroflê, Giroflá, 1956
  • Romance de Santa Cecília, 1957
  • A Bíblia na Literatura Brasileira, 1957
  • A Rosa, 1957
  • Obra Poética,1958
  • Metal Rosicler, 1960
  • Poemas de Israel, 1963
  • Antologia Poética, 1963
  • Solombra, 1963
  • Ou Isto ou Aquilo , 1964
  • Escolha o Seu Sonho, 1964

Há uma obra de Cecília Meireles menos conhecida que é um livro infanto-juvenil chamado Olhinhos de Gato (acima na lista). Essa obra tomou como base a vida da autora, contando sua infância depois que perdeu a mãe e como foi criada pela avó.

O compositor Raimundo Fagner gravou músicas tendo poemas de Cecília Meireles como base.

A escritora recebeu diversas homenagens como o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras em 1938 por sua obra Viagem; o Prêmio de Tradução de Obras Teatrais (1962); o Prêmio Jabuti de Tradução de Obra Literária pelo livro Poesia de Israel (1963); o Prêmio Jabuti de Poesia em 1964, pelo livro Solombra etc.

A escola básica da freguesia de Fajã de Cima, nos Açores, tem o nome de Cecília Meireles. Na província de Valparaíso, no Chile, foi fundada em 1964 a “Biblioteca Cecília Meireles”.

No tempo dos cruzados novos a efígie de Cecília Meireles estava na nota de cem cruzados novos, que foi lançada em 1989.

 

Abaixo algumas poesias de Cecília Meireles:

 

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Nadador

O que me encanta é a linha alada
das tuas espáduas, e a curva
que descreves, pássaro da água!

É a tua fina, ágil cintura,
e esse adeus da tua garganta
para cemitérios de espuma!

É a despedida, que me encanta,
quando te desprendes ao vento,
fiel à queda, rápida e branda

E apenas por estar prevendo,
longe, na eternidade da água,
sobreviver teu movimento…

 

Pergunto-te onde se acha a minha vida


Pergunto-te onde se acha a minha vida.
Em que dia fui eu. Que hora existiu formada
de uma verdade minha bem possuída

Vão-se as minhas perguntas aos depósitos do nada.

E a quem é que pergunto? Em quem penso, iludida
por esperanças hereditárias? E de cada
pergunta minha vai nascendo a sombra imensa
que envolve a posição dos olhos de quem pensa.

Já não sei mais a diferença
de ti, de mim, da coisa perguntada,
do silêncio da coisa irrespondida.

 

Tumulto

Tempestade... O desgrenhamento
das ramagens... O choro vão 
da água triste, do longo vento, 
vem morrer-me no coração.

A água triste cai como um sonho,
sonho velho que se esqueceu...
( Quando virás, ó meu tristonho
Poeta, ó doce troveiro meu!...)

E minha alma, sem luz nem tenda,
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará...

 

Algumas frases de Cecília Meireles:

 

"Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira".

"Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação de meus desejos afligidos"

"Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre".

"Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda".

"Tenho fases, como a Lua; fases de ser sozinha, fases de ser só sua".

 

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Márcio José Matos Rodrigues

  Figura:  https://www.google.com/search?sxsrf=ALeKk00b17Xu-srlwNPfKSWUueFmrZTGLw:1604808679435&source=univ&tbm=isch&q=imagem+de+cecilia+meireles&sa



domingo, 1 de novembro de 2020

Comentários sobre o filme "Primeira Noite de um crime"

 







Como meu primeiro artigo de novembro de 2020 resolvi escrever sobre o filme “The First Purge”( No Brasil chamado de Primeira Noite de Crime). Na verdade, esse filme faz parte uma franquia dos Estados Unidos de filmes de terror e ação realizados entre 2014 e 2018 e mais recentemente foi feita uma série de televisão. Essa franquia mostra uma visão distópica da sociedade dos Estados Unidos, havendo legalização de todo tipo de crime (inclusive assassinato), por um governo federal  de linha fascista de um período de 12 horas (19:00 da noite até às 7:00 da manhã), a chamada “Noite do Expurgo”.

Quem dirigiu os três primeiros filmes da franquia foi James De Mônaco, que também escreveu o roteiro de todos os quatro filmes e alguns episódios da série. Os filmes mostram um futuro violento nos Estados Unidos, com o governo implantando um sistema altamente autoritário de governar, estimulando  na sociedade os preconceitos, a violência, o sadismo e com discursos de agressividade.

A justificativa do governo para a “Noite do Expurgo” é a de que deseja reduzir os casos de violência por meio da liberação da população para que possa praticar qualquer crime nesse período de 12 horas, quando a polícia, os bombeiros e a ajuda médica ficam sem funcionar. O novo partido no poder é chamado de “Novos Pais Fundadores da América”.

Nos quatro filmes e na série baseada na temática deles vê-se pessoas que procuram sobreviver durante a noite de terror. Há os que fizeram economias por meses para pagarem um aparato de segurança caro de proteção. Porém os mais ricos é que ficam em nítida vantagem e os pobres ficam muitas vezes desprotegidos ou com uma proteção bem mais fraca. E entre os mais pobres destacam-se os negros. Há na verdade uma intenção por parte do governo nacional de promover um extermínio dos mais pobres. Era uma forma de controle populacional exterminando os que o governo fascista julgava ser de seres inferiores.

 

Nos  filmes há as seguintes regras em relação à noite quando há expurgos:


          -Ocorrem toque de sirenes para anunciar o início e o fim.

-Todos os serviços de polícia, bombeiros e emergências médicas permanecem indisponíveis durante as 12 horas.

-Os funcionários do alto escalão do governo recebem imunidade (revogada no terceiro filme para legalizar o assassinato de um opositor político).

-Armas de "Classe 4" e abaixo são permitidas para uso enquanto armas "Classe 5" (granadas, lança-foguetes, bazucas, armas de destruição em massa e agentes virais, biológicos e químicos) não são autorizadas.

-Enforcamento público é a punição para os infratores de quaisquer regras.

A mensagem abaixo é utilizada pelo Sistema de Transmissão de Emergência para anunciar o início do Expurgo nos dois primeiros filmes:

Isto não é um teste.
Este é o seu sistema de transmissão de emergência anunciando o início do Expurgo Anual sancionado pelo governo dos EUA.
O uso de armas da classe 4 e inferiores estão autorizadas durante o expurgo. Todas as outras armas são restritas.
Funcionários do governo do ranking 10 receberam imunidade do Expurgo e e não devem ser machucados.
Começando na sirene, todo e qualquer crime, incluindo assassinato, será legal por 12 horas contínuas.
A polícia, os bombeiros e os serviços médicos de emergência estarão indisponíveis até amanhã de manhã às 7 horas da manhã, quando O Expurgo se concluir.
Abençoados sejam nossos Novos Pais Fundadores e a América, uma nação renascida.
Que Deus esteja com todos vocês.

Sistema de Transmissão de Emergência

 

No terceiro filme, "The Purge: Election Year", teriam se passado 20 anos e as regras sofrem alterações porque o governo queria que uma senadora de oposição fosse morta. O anúncio ficou assim:

Isto não é um teste.
Este é o seu sistema de transmissão de emergência anunciando o início do Expurgo Anual sancionado pelo governo dos EUA.
Começando na sirene, todo e qualquer crime, incluindo assassinato, será legal por 12 horas contínuas.
O uso de armas da classe 4 e inferiores estão autorizadas durante o expurgo. Todas as outras armas são restritas.
A polícia, os bombeiros e os serviços médicos de emergência estarão indisponíveis até amanhã de manhã às 7 horas da manhã.
E, pela primeira vez desde a sua criação, ninguém recebeu imunidade especial do Expurgo. Nenhum cidadão ou grupo será isento.
Abençoados sejam nossos Novos Pais Fundadores e a América, uma nação renascida.
Que Deus esteja com todos vocês.

Sistema de Transmissão de Emergência

 

No quarto filme, “The First Purge”, há a explicação de como tudo começou. O diretor foi outro: Gerard McMurray. O filme foi lançado em 4 de julho de 2018 nos Estados Unidos. Também foi lançada em setembro de 2018 uma série de televisão na qual foi mais detalhada a origem dos expurgos e do governo autoritário que se instalou após uma profunda crise econômica e política.

É neste filme que é explicado o surgimento do partido fascista que toma o poder “Os Novos Pais Fundadores da América”. É anunciado um experimento social com a noite de 12 horas onde as pessoas poderiam expurgar o que quiserem. Uma cientista é aliada ao governo e incentiva as pessoas a participarem. Mas o que era para ser um experimento “comportamental” visando uma espécie de “seleção natural” passa a ser uma ação política do governo”. Nesse experimento só uma parte de Nova York é atingida,Staten Island (nos outros 3 filmes a noite de crime é estendida a outras cidades). Os que lutam pela sobrevivência em sua maioria são da população negra e pobres.

Comentaristas de cinema analisaram positivamente o tipo de crítica social que o filme quis passar. Assim, não é um filme que deseja mostrar só a violência, há um terror mais psicológico e a parte dramática foi considerada muito boa. Alguns comentaristas apenas consideraram que poderia haver mais complexidade dos personagens. O quarto filme é assim considerado o mais político de todos, mas algumas partes são criticadas por especialistas em cinema, por haver muitos tiroteios consecutivos, um exagero considerado chato e desnecessário.

Certos críticos consideraram o filme bem realista, podendo ser associado à situação de alguns países com regimes autoritários nos quais há a matança como uma forma legitimada por certos governos, com incentivo a grupos militares ou paramilitares em práticas violentas, não raramente com influências de ideias da extrema-direita. 

Interessante é que há um partido nos Estados Unidos, Partido da Constituição (anteriormente Partido dos Contribuintes Americanos, fundado em 1992), que é de extrema direita e faz menção ao legado dos Pais Fundadores e tem ligações muito fortes com a religião. É um partido com mais de 360 mil eleitores. Entre suas características há o Nacionalismo, o Conservadorismo Nacional, a Direita Cristã, o Isolacionismo, o Conservadorismo Fiscal, o Conservadorismo Social e Paleoconservadorismo (ligado ao tradicionalismo, ao anticomunismo e à ética judaico-cristã; à defesa do regionalismo, do nacionalismo, protecionismo, constitucionalismo e federalismo; à crítica à imigração sem restrições e ao multiculturalismo; ao controle sobre o livre comércio).

Também há grupos dentro do Partido Republicano que são muito ligados ao Conservadorismo Nacional e ao Conservadorismo Fiscal, como também ao tradicionalismo cristão e à ampla defesa do uso de armas. Estas facções dentro do Partido Republicano tem  algumas ideias ultraconservadoras semelhantes às do Partido da Constituição.

Há ainda milícias armadas de extrema-direita nos Estados Unidos e a própria Ku Klux Klan (atualmente mais enfraquecida em relação a outros tempos no século XX em que estava muito mais forte), que são grupos que defendem a exclusão social de parcelas da população dos Estados Unidos, entre estas parcelas estão os afro-americanos.

Existe historicamente a questão da eugenia, que foi muitas vezes associada somente aos alemães no tempo do nazismo e que fez parte da história dos Estados Unidos. Houve neste país nas primeira décadas do século XX práticas de esterilização de pessoas consideradas em um nível inferior como os considerados com inteligência abaixo da média e de populações consideradas geneticamente indesejáveis.

Grupos como os acima citados e fatos históricos como a questão da Eugenia  podem ter levado a uma inspiração do autor para os filmes e série. E também podem ter influenciado em sua visão  fatos mais recentes no próprio século XXI, de injustiças contra cidadãos negros. 

As questões sociais nos Estados Unidos ligadas à marginalização, à exclusão de grupos sociais e étnicos podem estar relacionadas ao que o filme “Primeira Noite de Crime” quer denunciar, o extremismo de correntes de direita, o fundamentalismo religioso, o uso da violência contra minorias. E os filmes da franquia especulam assim sobre uma situação hipotética: “E se um governo totalmente dominado por ideologias mais extremadas tomar o poder e promover uma política radical de extermínio dos mais pobres?”

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História

 


Figura: 

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