Meu segundo artigo de março de 2024, considerando o Dia Internacional da Mulher, é sobre a cantora brasileira negra Maria D’Apparecida Marques. Ela nasceu em 17 de janeiro de 1926. Sua mãe, Dulcelina Marques, ficou grávida de um jovem de uma família rica de São Paulo para a qual ela trabalhara. Essa família a demitiu. Foi então trabalhar para um casal católico na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Quando tinha oito anos, a mãe de Apparecida morreu de tuberculose. O casal de empregadores de sua mãe a criaram, inclusive providenciaram que ela tivesse aulas de balé, frequentasse bons colégios, aprendesse línguas e tênis. Para ela foi dada a mesma educação que suas irmãs de criação. Porém, esse casal não a adotou oficialmente.
Já adulta, Apparecida dividiu-se entre o magistério e a locução. Alfabetizava crianças em escolas primárias de dia e à noite era narradora de histórias infantis em emissoras como Globo, Eldorado, Roquette Pinto e Rádio Nacional. Em setembro de 1947, o ativista do movimento negro Abdias Nascimento e sua companhia, Teatro Experimental do Negro, promoveram o baile Rainha das Mulatas. Apparecida se inscreveu nesse baile. Jornais da época no Rio de Janeiro anunciaram: "Para homenagear a flor da mistura de raças que se processa em nossa terra, compareceram cerca de 5 mil pessoas". Na ocasião, Apparecida foi premiada com o primeiro lugar. Textos da imprensa diziam que ela era dona de uma "carinha brejeira" e "curvas capazes de entontecer qualquer mortal". Ela inspirou os compositores João de Barros e Antônio Almeida que compuseram a marchinha A Mulata é a Tal, que fez sucesso no carnaval de 1948. Ele teve em sua juventude episódios de afonia, nos quais perdia a voz. Fez aulas de canto e teatro, tendo integrado o Teatro Experimental do Negro como atriz.
Apparecida, no tempo que ficou conhecida pelo destaque no baile, não estava satisfeita com o que acontecia na sua vida, tendo dito numa entrevista anos depois sobre esse tempo: "Descobri que era péssima professora(...). “Então começaram a dizer: 'vamos botar plumas aqui, mostrar as pernas, fazer isso e aquilo'. Fiquei tentada, mas não tive coragem." Decidiu pela carreira de cantora. Sobre isso disse em um relato: "Acho que todo brasileiro tem vocação. Você vê, chofer de táxi, empregada doméstica, todos cantam. Só que eu, mulata pernóstica, queria fazer ópera.". E assim, no final de 1949 ela formou-se em canto lírico pelo Conservatório Brasileiro de Música. Teve como professora a cantora Graziela de Salerno, que apresentava-se regularmente no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Foi nesse teatro que D’Apparecida assistiu às apresentações de duas das maiores sopranos da história — a italiana Renata Tebaldi e a greco-americana Maria Callas. Ela gostou muito e quis se apresentar naquele palco, porém por ser negra não lhe foi permitido. Segundo um relato dela um empresário ítalo-brasileiro na conservadora sociedade carioca dos anos 1950 disse para ela: “Você tem uma bela voz, mas você é negra. E negra não canta no Teatro Municipal”.
Naqueles tempos existia o rótulo de que mulheres negras tinham de ser associadas ao samba. Porém, apesar desse preconceito, cerca de 130 anos antes de Maria D’Apparecida, existiram mulheres brasileira negras na ópera. No final do século XVIII a mineira Joaquina Lapinha atravessara diversas cidades portuguesas, apresentando-se com o rosto pintado de branco. Também a cantora Zaíra de Oliveira, em 1921, ganhou uma viagem à Europa num concurso promovido pelo Instituto Nacional de Música. O júri se recusou dar o prêmio a ela por causa da cor da pele. Nos anos 50 do século XX a cantora Maura Moreira teve muitas dificuldades no Brasil para exercer sua carreira de cantora lírica e foi para a Alemanha graças a uma bolsa de estudos. Apparecida, mesmo diante dos obstáculos insistia e disse sobre essa época em sua vida: "Coragem nunca me faltou. Apresentei-me em alguns recitais por aqui, depois os amigos insistiram que eu fosse para a Europa". Fazendo uma comparação com um famoso escritor austríaco que cometeu suicídio ela disse: "Estabeleci um tempo para vencer. Caso contrário, daria uma de Stefan Zweig."
Maria D’Apparecida se inscreveu num concurso de canto na Itália, em que ganhou uma medalha. Em Paris a partir de 1959, Maria D’Apparecida conheceu o cenógrafo, pintor surrealista e entusiasta da cultura afro-brasileira Félix Labisse, que era casado e vinte anos mais velho que ela. De início Maria foi modelo para ele e depois passaram a ser amantes. A esposa do pintor não se opôs à relação deles. Em pelo menos quatorze quadros foi retratada nua, em tons celestes, como filha de Iemanjá. Foi ela que sugeriu a cor, pois percebeu a dificuldade de Labisse em dar às tintas a cor de sua pele. Nessa convivência com esse artista ela conviveu com alguns dos principais nomes da cultura europeia no século 20, pois o artista tinha contatos com pintores como Salvador Dali e René Magritte; cineastas como Federico Fellini e Alain Resnais; e escritores como Jacques Prévert e Raymond Queneau.
Para D’Apparecida ela era “Uma operária da música”. Ela afirmou: “Se no palco dou o melhor de mim, fora dele sou uma pessoa como outra qualquer. Ando de botas e calça comprida." E no ano de 1960, apresentou-se pela primeira vez na televisão na França. Em 1961 promoveria um recital de temas folclóricos no Teatro do Odéon, em Paris, com obras dos compositores brasileiros Waldemar Henrique, Hekel Tavares, Ernani Braga e Heitor Villa-Lobos. Ela disse a respeito das obras dos autores: "Música linda, da qual ninguém toma conhecimento". (...) "Aqui só queremos cantar Brahms, Schumann, Schubert. A princípio, achavam loucura eu incluir no repertório outros compositores. De minha parte, dou tanta importância à música lírica brasileira quanto à ópera." o dramaturgo Guilherme Figueiredo disse sobre o espetáculo: "Como se comportariam os franceses diante de obras que, afinal, não possuem grande coisa do que se espera que seja a música popular brasileira, isto é, alguma coisa meio americana e meio cubana?" “Como receberiam uma cantora erudita que, embora de beleza tipicamente nacional, não oferece à plateia estrangeira os requebros que ela obrigatoriamente espera de uma cantora brasileira? Maria D’Apparecida venceu a prova [...] O triunfo estava ali, na sala, na acolhida dos críticos, na imediata repercussão manifestada por convites e contratos."
D’Apparecida disse ao jornalista Hélio Oliveira, do Diário Carioca sobre como conseguiu ser a primeira brasileira a ingressar no corpo artístico da Ópera de Paris: "Trabalhando como uma negra." Ela defendia a modernização da ópera."Com a televisão e com o cinema, esse negócio de ópera tem que ser um troço assim muito pra frente, entendeu? A gente tem que fazer um circo. A gente tem que alegrar, tirar a poeira."Com a televisão e com o cinema, esse negócio de ópera tem que ser um troço assim muito pra frente, entendeu? A gente tem que fazer um circo. A gente tem que alegrar, tirar a poeira. Fazer um negócio assim, meio comédia musical, ligeiro, um pouquinho sapeca. Ópera, pra mim, é festa.
Maria D’Apparecida retornou ao Brasil em 31 de julho de 1965 para comemorações oficiais do quarto centenário do Rio de Janeiro. O Theatro Municipal foi o palco escolhido para a temporada lírica da festividade. Em uma época passada ela tinha sido recusada nesse mesmo teatro, porém agora voltava como integrante de uma trupe francesa, com a qual interpretaria a protagonista da ópera Carmen, de Bizet. Na antevéspera da primeira apresentação, dia 18 de agosto, os ingressos se esgotaram. Maria estava ansiosa. Afirmou: "Não consigo dormir". (...) “Estou em permanente estado de tensão. Não é fácil estar longe de nossa terra, de nossa gente, mesmo quando se encontra o carinho que eu, graças a Deus soube achar fora do Rio.”
A ópera tem originalmente seu ambiente na Espanha, mas houve versões que introduziram seus personagens ao imaginário negro, como Carmen Jones, musical encenado na Broadway a partir de 1943. A trama se dá nos EUA da Segunda Guerra Mundial, com um elenco inteiramente afro-americano. E, após onze anos dessa peça, Otto Preminger dirigiu uma adaptação cinematográfica da mesma, fazendo da protagonista Dorothy Dandridge a primeira negra a ser indicada ao Oscar de melhor atriz. D’Apparecida disse em certa ocasião ao jornal Pasquim: "Carmen poderia ser carioca". (...)"Ela é assim, saliente, moleca de morro. Honesta nos princípios dela, mas uma barra pesada, né?”
Infelizmente houve fatos lamentáveis relacionados às apresentações de D’Apparecida no Municipal. Quando ficou gripada, as enfermeiras do teatro se recusaram a atendê-la e colegas brasileiras a hostilizaram. Ela contou ao jornalista Lauro Gomes em uma entrevista que pessoas do coro atrás dela disseram: “Sua neguinha, o seu lugar não é aqui.” A cantora chegou a comentar: "Fico com pena. Na época atual, ter uma reação dessa natureza é o fim. O preconceito existe. Negro, judeu, pederasta, somos marginais."Quando ela apresentou o mesmo espetáculo na capital francesa semanas mais tarde, foi bem recebida. o jornal Le Parisien comentou: "D’Apparecida é, sem dúvida, a Carmen mais completa que já conhecemos".(...) "Sua voz tem os graves do violoncelo e os agudos de um metal brilhante, sem rachaduras. Ela vive do começo ao fim essa aventura, canalha e tenra, alegre e melancólica, dramática e exuberante. Uma descoberta sensacional."
Em 1964 Maria D’Apparecida esteve em países africanos e observou a luta dos movimentos anticoloniais que eclodiam no continente. No mesmo ano, ao apresentar-se em Berlim foi assistida por Martin Luther King. Quando houve uma manifestação antirracista no anfiteatro da Universidade Sorbonne, em Paris ela participou. Em 1974 houve um terrível acidente com o táxi onde ela estava. Ela feriu muito o rosto, sua voz foi muito afetada e havia o risco de ficar cega. Ela teve de enfrentar três anos de convalescença e cirurgias. Houve sequelas que impossibilitaram que ela cantasse toda uma ópera.
Foi nessa época que estava se recuperando do acidente que ela leu o romance NegrasRaízes, best-seller de Alex Haley sobre as heranças da escravidão nos EUA. Essa leitura a fez refletir muito sobre sua própria história como mulher negra. Ela passou a se direcionar ao misticismo, tendo dito a respeito: "Eu, que havia perdido um pouco a fé, fiquei de tal maneira vulnerável que senti necessidade de entender as outras religiões". (...)"O simples ato de acordar é um milagre. Que o Deus de cada um seja Cristo, Buda ou Maomé, não faz diferença alguma. O importante é agradecer.”
D’Apparecida a partir de 1977 foi se dedicando à Música Popular Brasileira (MPB). No mesmo ano lançou, na companhia do violonista Baden Powell, o primeiro álbum dessa nova fase. Ela disse sobre isso: "Arrisquei meu nome na ópera porque quis provar a mim mesma que também podia cantar música popula". (...) "Sempre dou algumas explicações ao público sobre a letra, dizendo quem é o compositor, para que não fiquem achando que é tudo igual, sobre pássaros, mar e mulher." E a intérprete gravaria Chico Buarque, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Tom Jobim e Vinicius de Moraes no disco a seguir.
Sobre si mesma como cantora ela afirmou em 1978: "Em meu país, uma negra que canta ópera só pode ser pedante, se ela não for um prodígio. O sucesso me fez esquecer essa evidência, e a pequena morte que sofri fez-me reivindicar o direito à normalidade.”
Em 1991 ela escreveu uma carta ao então presidente do Brasil Fernando Collor de Mello. Na carta ela dizia: "Não tenho capacidade emocional, física, nem dinheiro [...] para levar uma vida decente no nosso país" (...)"Há muito tempo escuto a mesma ladainha: isto aqui está horrível. Agora, parece que piorou. [...] Suas gracinhas já chegaram lá por Paris, e já não tenho mais cara para defender nosso país. Mas, como diz a canção, a gente vai levando... e eu continuarei sempre tentando segurar as pontas."
Ela quis publicar uma autobiografia, mas desistiu. Clara Chotil, quadrinista que publicou uma revista em quadrinhos sobre a cantora comentou: "Sinto que ela foi uma pessoa extremamente misteriosa”. (...)"Às vezes, é como se fosse personagem de si mesma, narrando experiências verídicas em ritmo ficcional, com alguns detalhes imprecisos e meio contraditórios. Se ela esboçou uma autobiografia no momento em que saía da vida pública, o texto provavelmente retratava a Maria que ela desejava mostrar, não a mulher fragilizada que de fato era.”
Maria D’Apparecida faleceu em 4 de julho de 2017. Morreu só, na banheira, no seu apartamento. Seu corpo ficou dois meses no IML francês até que fosse enterrado num cemitério de Paris. Ela queria ser enterrada no norte da França, junto ao seu amado Labisse, que tinha morrido nos braços dela, no início dos anos 1980. Ela não tinhafilhos e nem herdeiros. Viveu por mais de 50 anos em Paris. Ela voltava ao Brasil uma vez por ano para visitar o túmulo de sua mãe. Ela disse certa vez: “Saudade é uma palavra que eu risquei do meu vocabulário” (...).“Se alguma coisa me falta, eu procuro ter.” Ficou conhecida internacionalmente como "a Maria Callas afro-brasileira”. Foi feito em 2021 um filme-espetáculo sobre ela: “Maria d'Apparecida: Luz Negra”.
Segundo a autora Camila Fresca em 31 de dezembro de 2012:
“Há dois anos, a morte solitária em Paris da mezzo soprano brasileira Maria d’Apparecida chamou a atenção de parte do mundo musical. Para alguns, era a primeira vez que se ouvia falar naquele nome. Com quase 92 anos, a cantora, que não se apresentava há pelo menos 15 anos, morreu sozinha e esquecida no dia 4 de julho de 2017. Seu corpo só foi descoberto por vizinhos dias após a morte. Encaminhado ao IML, estava prestes a ser enterrado como indigente, até que, pela mobilização de conhecidos e admiradores, acionou-se a embaixada brasileira e Maria d’Apparecida foi finalmente sepultada, mais de dois meses após sua morte.
Foi um final triste para a primeira brasileira negra a consagrar-se como protagonista da ópera Carmen na Ópera de Paris. Filha de uma empregada doméstica engravidada pelo filho do patrão, Maria d’Apparecida foi criada no Rio de Janeiro por uma família que a educou junto com os seus filhos, embora nunca tenha sido adotada oficialmente. Teve aulas de francês e piano e cursou o Conservatório Brasileiro de Música. Ao vencer um concurso promovido pela Associação Brasileira de Imprensa, tentou iniciar carreira no canto.
Em entrevista a Lauro Gomes na Rádio MEC (veja abaixo), ela contou: “Quando eu quis fazer carreira lírica no Brasil um ítalo-brasileiro me disse: ‘Maria d’Apparecida, você tem uma bela voz, mas você é negra. E negra não canta no Theatro Municipal’. Aquilo pra mim foi uma tal pedrada... Eu tive que abandonar pátria e família, não foi fácil”.
Maria d’Apparecida teria primeiro que se consagrar na Europa, causando enorme impacto no papel de Carmen, na década de 1960, para só então estrear no Municipal carioca, em 20 de agosto de 1965. O início da carreira europeia, no entanto, se deu com a canção de câmara brasileira. Ela partiu com o compositor Waldemar Henrique para tentar a sorte no velho continente em 1959 e, juntos, apresentaram-se em Portugal, Madri e Paris, onde gravaram um disco – o primeiro dos mais de 20 que ela faria.
Um exemplo de seu repertório pode ser conferido no programa (disponibilizado online pelo Instituto Piano Brasileiro) de um recital que ela deu no Rio de Janeiro em 1972, acompanhada ao piano por Hermelindo Castello Branco, e no qual constam canções de Villa-Lobos, Waldemar Henrique, Mignone e Almeida Prado, além de árias das Bodas de Figaro, Contos de Hoffmann, West sidestory e, claro,Carmen.
O recital aconteceu dois anos antes de um desastre que teria consequências definitivas. No Natal de 1974, ela sofreu um acidente de carro grave, do qual levaria três anos para se recuperar. Voltou ao canto lírico, mas não era mais capaz de cantar uma ópera inteira, e acabou enveredando pela música popular: o disco “Maria d'Apparecida chante Baden Powell”, de 1977, marcou a virada na carreira e foi recebido com bastante sucesso. À época do lançamento, Carlos Drummond de Andrade publicou um texto no jornal dando notícias da artista e da retomada de sua carreira. Ao final, dedicou “para Maria d’Apparecida, este quase poema resultante de uma admiração afetuosa”, cujos versos finais dizem: “Tua voz, d’Apparecida, é aparição / fulgurante, sensitiva, dramática / e vem do fundo nigroluminoso de nossos corações / e vai, e volta e vai, / Maria d’Apparecida do Brasil, /aparecedoramentecantaril”.
O poema de Drummond não foi a única obra que a cantora inspirou: Maria d’Apparecida foi musa do pintor surrealista Félix Labisse (1905-1982), com quem teve um longo romance e que a retratou em ao menos 15 telas (...)”
Segundo Daniel Salomão Roque, São Paulo, BBC News Brasil, em 19 de novembro de 2023:
“Negra e filha de doméstica: quem foi Maria D’Apparecida, primeira brasileira a cantar na Ópera de Paris
A dramaturga carioca Dione Carlos não economiza adjetivos ao recapitular o Natal de 2018: "Foi algo incrível, totalmente aleatório, um dos eventos mágicos da minha vida."
Avessa aos festejos, ela havia se abrigado em casa, e passou a noite ouvindo música — atividade que, segundo ela, faz parte de seu processo criativo.
"Às vezes, faço pesquisas sonoras para formar uma espécie de acervo sensível", afirma. "Isso me ajuda na escrita, e naquela madrugada resolvi buscar algumas coisas no YouTube."
Dali a alguns minutos, escutaria um trecho de Carmen, ópera em quatro atos composta pelo francês Georges Bizet (1838-1875).
O vídeo a intrigou — continha apenas o retrato onírico de uma mulher com pele azul; uma faixa de áudio, gravada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro; e o nome da intérprete, a mezzo-soprano Maria D’Apparecida.
"A voz era linda, e fiquei curiosa por ser uma cantora brasileira da qual eu nunca tinha ouvido falar. Então, caí noutro vídeo, dela se apresentando em Paris", lembra Dione.
Trata-se de uma filmagem em preto e branco, realizada pela televisão francesa num domingo, 2 de janeiro de 1966.
D’Apparecida, sorridente e acompanhada pelo pianista Jack Diéval, anuncia em português: "Esta noite, estou aqui entre vocês para cantar uma melodia do meu Brasil."
Na sequência, a dupla executa Tamba-Tajá, canção de Waldemar Henrique inspirada numa lenda indígena do povo Macuxi. Pouco a pouco, a câmera se aproxima, e o rosto da intérprete ocupa todo o quadro.
Como Dione, Maria D’Apparecida era negra.
"Por razões óbvias, quis saber mais sobre aquela mulher", conta a dramaturga.
"Mas quando joguei o nome dela no Google, fiquei revoltada com o que li."
A cantora morrera no dia 4 de julho de 2017. Sem filhos nem herdeiros, vivia em Paris há mais de meio século e mantinha-se longe das ruas — suas últimas apresentações teriam ocorrido na década de 1990.
Isolada no próprio domicílio, sem acesso à internet, escrevia regularmente e costumava se ajoelhar em frente a imagens de santos. Ela não atendia o telefone e devolvia todas as cartas que chegavam do Brasil.
O contato com o mundo externo se dava exclusivamente pelas visitas de uma empregada, que batera à sua porta naquela terça-feira, às 13h30.
A patroa, tomando banho, lhe pediu que voltasse mais tarde — e não respondeu mais. No dia seguinte, vizinhos se queixaram da água escorrendo de seu apartamento. O corpo de Maria D’Apparecida flutuava na banheira.
Em vida, a intérprete lançara mais de vinte discos, excursionando por toda Europa. Em 1981, recebeu do então prefeito de Paris Jacques Chirac a Medalha da Cidade de Paris. Anos depois, o presidente francês François Mitterrand lhe concederia o título de Oficial da Legião de Honra, uma das mais altas condecorações do governo francês. Apesar disso, sua morte não foi imediatamente noticiada.
Moro em Paris há 38 anos e nunca tinha ouvido falar na Maria D’Apparecida", afirma a jornalista sul-mato-grossense Mazé Torquato Chotil.
"Um pianista brasileiro, amigo do meu marido, veio almoçar aqui em casa e perguntou se a gente tinha visto uma postagem sobre ela nas redes sociais."
O Consulado-Geral do Brasil veiculara um anúncio, duas semanas após o falecimento. O corpo da cantora permanecia no Instituto Médico Legal de Paris, e a entidade diplomática tentava contatar seus familiares. Caso ninguém se apresentasse, D’Apparecida seria enterrada como indigente.
"Daí fui pesquisar a carreira dela", relata Mazé. "Mas senti que havia pouquíssima informação disponível."
Para seu espanto, a mezzo-soprano surgia em fotos com Heitor Villa-Lobos, Baden Powell, Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
Relatos davam conta de que se apresentara na Ópera de Paris, a mais tradicional companhia do gênero na França (...)”
Sugestão de vídeo:
https://www.ina.fr/ina-eclaire-actu/video/i10253125/maria-d-apparecida-tamba-taja
Maria d'Apparecida "Tamba Taja"
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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História
Figura:
https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&q=imagem+de+maria+dapparecida#imgrc=jaqzcQb__17
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