quarta-feira, 5 de março de 2025

O escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna

 




No dia 4 de março de 2025 faleceu na cidade do Rio de Janeiro, o escritor e poeta brasileiro Affonso Romano de Sant'Anna . Além de se destacar pelas suas obras e ensinamentos em diversos lugares, destacou-se também pelo seu empenho em popularizar a leitura no Brasil e por seu trabalho de modernização da Biblioteca Nacional.  Nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais em 27 de março de 1937. Aos 16 anos de idade, ele publicou seus primeiros textos —críticas de cinema e teatro —, na imprensa de Juiz de Fora, cidade onde vivia. Na sua adolescência ele trabalhou como carregador de marmitas e de trouxas de roupas para lavadeiras. Seus pais queriam que ele fosse pastor evangélico.

Afonso Romano participou nas décadas de 1950 e 1960 de movimento de vanguarda poética. Formou-se em 1961 em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UMG, que atualmente é a Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Em 1962 publicou o ensaio O Desemprego da Poesia e em 1965 lançou seu primeiro livro de poesias, Canto e Palavra. Lecionou em 1965 na Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados Unidos, tendo participado do Programa Internacional de Escritores da Universidade de Iowa, envolvendo 40 escritores de vários países.

Afonso concluiu seu doutorado na UFMG em 1969 e em 1970 organizou um curso de pós-graduação em literatura brasileira na PUC do Rio de Janeiro. De 1973 a 1976 foi diretor do Departamento de Letras e Artes da PUC-Rio, destacando-se por ter realizado a “Expoesia”, que era uma série de série de encontros nacionais de literatura. Ministrou cursos na Europa (Universidade de Colônia, Alemanha; Universidade de Aarhus, na Dinamarca; Universidade de Aix-em-Provence, na França; Universidade Nova, em Portugal) e nos Estados Unidos (Universidade do Texas e UCLA). De 1990 a 1996 foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional e promoveu campanhas de incentivo à leitura, como por exemplos, o Sistema Nacional de Bibliotecas e o Programa de Promoção da Leitura (PROLER), de incentivo à leitura que mobilizou milhares de voluntários em todo o Brasil

A tese de doutorado de Afonso foi sobre a poética de Carlos Drummond de Andrade. O título da tese foi Drummond, um gauche no tempo. Ele foi cronista, tendo trabalhado nos jornais Jornal do Brasil de 1984 a 1988 e O Globo, até o ano de 2005. Escreveu também para os jornais Estado de Minas e Correio Braziliense. Foi casado desde 1971 com a escritora e poeta Marina Colasanti, falecida em janeiro de 2025. Ele estava há alguns anos com o Mal de Alzheimer e faleceu aos 87 anos de idade. Ganhou os seguintes prêmios: Prêmio Pen-Club; Prêmio União Brasileira de Escritores; Prêmio Estado da Guanabara; Prêmio Mário de Andrade do Instituto Nacional do Livro; Prêmio do Governo do Distrito Federal; Prêmio Jabuti. Presidiu o Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América-Latina e no Caribe (CERLALC). Ele publicou mais de 60 livros.

Algumas Obras de Affonso Romano de Sant'anna:

“Canto e Palavra” (1965); "Que país é este?" (1980), "O canibalismo amoroso" (1984), "A mulher madura" (1986, primeiro livro de crônicas), "O imaginário a dois" (1987, em parceria com Marina Colasanti), "Mistérios gozosos" (1994); "Vestígios" (2006) e "Sísifo desce a montanha" (2012).

Segundo o jornalista Afonso Borges sobre Affonso Romano de Sant'anna:

"Fez tudo na vida para tornar a poesia popular e social. Era uma determinação na vida dele. Todos os livros tinham uma força ligada à sociedade brasileira; era um poeta da realidade brasileira”.

Também disse Afonso Borges:

"Foi uma das pessoas nessa geração que mais conseguiu popularizar a poesia, escrevendo em jornais por mais de trinta anos, assim como [Carlos] Drummond [de Andrade]. Fizeram o poema popular por ser popular, já que também eram sociais".

Em 2012 Affonso Romano de Sant'anna fez o seguinte comentário ao jornal "Tribuna de Minas" : "Aconteceu um fato muito curioso comigo no Facebook. Publiquei um poema pequeno, e os internautas começaram a ter várias reações positivas e bonitas sobre ele. Muitos dizendo que vão reproduzi-lo, e, de repente, é como se a moeda entrasse em circulação. As pessoas se apoderaram dele. Sou totalmente a favor da poesia na web, e, se Homero e Shakespeare fossem vivos, teriam a mesma opinião."

Sobre o seu poema "A implosão da mentira”, que Affonso Romano publicou nas redes da Internet, ele comentou sobre a popularização do mesmo de tal forma que não se dizia mais quem era o autor:  "Quando ninguém sabe qual é o autor e começa a reproduzir o texto é sinal de que a obra atingiu o seu objetivo, misturou-se com a cultura popular. Alguns poemas como este já foram usados por várias pessoas, vários partidos e, volta e meia, aparecem na internet. Um outro poema meu chamado "Que país é este" já foi utilizado em música, teatro e várias outras situações. Há algum tempo, ele apareceu na rede como autor desconhecido. De uma certa maneira, isso me deixa feliz, porque o autor quer é ser lido, quer passar o recado. Eu não vou ganhar dinheiro com poesia."

A Câmara Brasileira do Livro (CBL) lamentou o falecimento do escritor, poeta, cronista e ensaísta: "Affonso Romano destacou-se pela sensibilidade e profundidade com que abordava temas sociais, culturais e políticos. Como presidente da Fundação Biblioteca Nacional (1990-1996), foi um grande incentivador da leitura e da valorização do livro, contribuindo significativamente para o fortalecimento do setor editorial no Brasil."

 

Alguns poemas de Affonso Romano de Sant’Anna :

 

 O Amor e o Outro

Não amo
melhor
nem pior
do que ninguém.

Do meu jeito amo.
Ora esquisito, ora fogoso,
às vezes aflito
ou ensandecido de gozo.
Já amei
até com nojo.

Coisas fabulosas
acontecem-me no leito. Nem sempre
de mim dependem, confesso.
O corpo do outro
é que é sempre surpreendente.

Sou um dos 999.999 Poetas do País

Fragmento 1

INTRODUÇÃO SÓCIO-INDIVIDUAL DO TEMA

Sou um dos 999.999 poetas do país
que escrevem enquanto caminhões descem pesados de cereais
e celulose
ministros acertam o frete dos pinheiros
carreados em navios alimentados com o óleo
que o mais pobre pagará.

(- Estes são dados sociais
de que não quero falar, embora
tenha aprendido em manuais
que o escritor deve tomar o seu lugar na História
e o seu cotidiano alterar.)

Sou um dos 999.999 poetas do país
com mãe de olhos verdes e pai amulatado
ela – a força de áries na azáfama da casa
a decisão do imigrante que veio se plantar
ele – capitão de milícias tocando flauta em meio
às balas
lendo salmos em Esperanto sobre a mesa
domingueira.

(- Estes são sinais particulares
que não quero remarcar, embora
tenha aprendido em manuais
que o que distingüe a escrita do homem
são seus traços pessoais que ninguém pode
imitar.)

Fragmento 2

DESENVOLVIMENTO HÁBIL E CONTÁBIL DO (P)R(O)BL(EMA)

Sendo um dos 999.999 poetas do país
desses sou um dos 888.888
que tiveram Mário, Bandeira, Drummond,
Murilo, Cecília, Jorge e Vinícius como mestres
e pelas noites interioranas abriam suas obras
lendo e reescrevendo os versos deles nos meus versos
com deslumbrada afeição.

Desses sou um dos 777.777 poetas
que se ampliaram ao descobrir Neruda, Pessoa,
Petrarca, Eliot, Rilke, Whitman, Ronsard e Villon
em tradução ou não
e sem qualquer orientação iam curtindo
um bando de poetas menores/piores
que para mim foram maiores
pois me alimentavam com a in-possível poesia
e a derramada emoção.

Desses sou um dos 666.666 poetas
que fundando revistinhas e grupelhos aspiravam
(miudamente)
à glória erótica & literária
e misturando madrugadas, festas, citações, sonhos
de escritor maldito e o mito das gerações
depois da espreita aos suplementos
batem à porta do poeta nacional para entregar
poemas
(com a alma na mão)
esperando louvor e afeição.

Desses sou um dos 555.555
que um dia foram o melhor poeta de sua cidade
o melhor poeta de seu estado
dos melhores poetas jovens do país
e quando já se iam laureando aqui e ali em plena arcádia surpreenderam-se nauseados
e cobrindo-se de cinza retiraram-se para o deserto
a refazer a letra do silêncio
e o som da solidão.

Desses sou um dos 444.444 poetas
que depois da torrente de versos adolescentes e noturnos
se estuporaram per/vertidos nas vanguardas
e por mais de 20 anos não falamos de outra coisa
senão da morte do verso e da palavra e da vida do sinal
acreditando que a poesia tendia para o visual
e que no séc. XXI etc. e etc. e tal.

Desses sou um dos 333.333 poetas
que depois de tanto rigor, ardor, odor, horror
partiram para a impureza (consciente) das formas
podendo ou não rimar em ar e ão
procurando o avesso do aprendido
o contrário do ensinado
interessado não apenas em calar, mas em falar
não apenas em pensar, mas em sentir
não apenas em ver, mas contemplar
fugindo do falso novo como o diabo da cruz
porque nada há de mais pobre que o novo ovo de ouro
gerado por falsas galinhas prata.

Desses sou um dos 222.222 poetas
que penosamente descobriram que uma coisa
é fazer um verso, um poema ou mais
e receber os elogios médio-medianos dos amigos
e outra, bem outra, é ser poeta
e construir o projeto de uma obra
em que vida & texto se articulem
letra & sangue se misturem
espaço & tempo se revelem
e que nesta matéria revém o dito bíblico
– muitos os chamados, poucos os escolhidos.

Desses sou um dos 111.111 professores
universitários ou não
que antes de tudo eram poetas-patetas-estetas-profetas
e que depois de ver e viver da obra alheia
estupefatos
descobrem que só poderiam/deveriam
sobreviver com a própria
que escondem e renegam
por pudor
recalque
e medo.

Sou um dos 999 poetas do país
que
sub/traídos dos 999.999
serão sempre 999 (anônimos) poetas
expulsos sistematicamente da República por Platão
que um dia pensaram em mudar a História com
dois versos pena & espada
(o que deu certo ao tempo de Camões)
e que escrevendo páginas e páginas não mudaram nada
senão de tinta e de endereço.
Mas foi dessa inspeção ao nada que aprenderam
que na poesia o nada se perde
o nada se cria
e o nada se transforma.

Assombros

Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

Catando os Cacos do Caos

Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto
como se fosse flor.

Catar os restos e ossos
da utopia
como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.

Catar a verdade contida
em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
do dia cão.

Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.

Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.

Catar os cacos de Dionisio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.

Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
– como era antes.

Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.

É um quebra-cabeça?
Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção

Cacos de mim
Cacos do não
Cacos do sim
Cacos do antes
Cacos do fim

Não é dentro
nem fora
embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora
que violento
o sentido nos deflora.

Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora


Silêncio Amoroso – 2

Preciso do teu silêncio
cúmplice
sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal
pode me desamparar.
E se eu abrir a boca
minha alma vai rachar.
O silêncio, aprendo,
pode construir. É um modo
denso/tenso
– de coexistir.
Calar, às vezes,
é fina forma de amar.

 

Despedidas

Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm os que amando tudo o que perderam
já não mentem
.

 

Limites do Amor

Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeças de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, sem empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:

– ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta
.

Reflexivo

O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.

Amor e Medo

Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História

Figura:

https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&q=imagem+de+afonso+romano


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