segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A pintora brasileira Tarsila do Amaral

 


                                                   




                                                            O Abaporu


                                   

Tarsila de Aguiar do Amaral (mais conhecida como Tarsila do Amaral ou Tarsila),foi uma pintora, desenhista e tradutora brasileira nascida em Capivari, interior do Estado de São Paulo, em 1 de setembro de 1886. Ela é considerada uma grande artista modernista da América latina. O quadro dela chamado de Abaporu, pintado em 1928, deu início ao movimento antropofágico nas artes plásticas. Foi dito que ela era "a pintora brasileira que melhor atingiu as aspirações brasileiras de expressão nacionalista em um estilo moderno”. Participou de um grupo de cinco artistas brasileiros com muita influência no movimento de arte moderna no Brasil. Além dela, participaram: Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Ela foi a fonte de inspiração para Oswald de Andrade para o Manifesto Antropofágico. Mário fez parte do movimento Antropofagia (1928-1929).

Os pais de Tarsila eram Estanislau do Amaral Filho e Lídia Dias de Aguiar. O avô paterno era José Estanislau do Amaral, um rico fazendeiro no interior paulista que construiu importantes edifícios em Santos e São Paulo e em sua fazenda Sertão chegou a haver cerca de 400 escravos. Tarsila foi a segunda criança em um total de sete filhos. Estanislau do Amaral Filho herdou os bens de seu pai. Tarsila passou a infância em algumas dessas fazendas. Ela teve, em sua infância, muito contato com a zona rural. A educação familiar dela foi influenciada por aspectos culturais franceses. A mãe, Lídia, tocava músicas dos compositores Couperin e Dandrieu. Nas refeições havia comidas da culinária francesa e vinhos franceses. Até perfumes e roupas eram da França.

Tarsila estudou em São Paulo, em um colégio de freiras, no bairro de Santana e no Colégio Sion. Depois ela estudou no Colégio Sacré-Coeur, em Barcelona, Espanha, onde ela passou dois anos. Foi nesse colégio que ela começou a ter contato com a pintura. Em 1906 ela se casou com seu primo por parte de mãe, André Teixeira Pinto, muito conservador, que era contra Tarsila pintar e queria que ela se voltasse somente para atividades do lar, mas ela não concordou com essa imposição. Desse casamento nasceu Dulce, filha de Tarsila, que se separou do marido (o casamento foi anulado graças à influência de sua família) após o nascimento de sua filha e foi morar com seus pais. 

Tarsila do Amaral buscou aprender mais sobre pintura em 1917, com Pedro Alexandrino Borges e depois com o alemão George Fischer Elpons. Foi para Paris em 1920, frequentando a Academia Julian. Outro lugar de ensino foi a academia Émile Renard. Entre 1913 e 1920 Tarsila compôs uma canção, "Rondo D'Amour". A partitura da música foi descoberta em novembro de 2021 por uma sobrinha-neta e em 25 de janeiro de 2022 foi gravada no auditório da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte por três professores dessa instituição.

A adesão de Tarsila ao Modernismo começou em 1922, quando chegou ao Brasil. Ela foi apresentada nesse ano por Anita Malfatti aos modernistas Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia. Eles formaram o Grupo dos Cinco. Em janeiro de 1923 ela e Oswald de Andrade se uniram na Europa, viajando por Portugal e Espanha. Em Paris frequentou a Academia de Lhote e conheceu os pintores Pablo Picasso e Fernand Léger. A arte desse pintor exerceu influência na pintura de Tarsila, como no caso da a técnica lisa de pintura. Em 1924 ela, o poeta franco-suiço Blaise Cendras e modernistas brasileiros fizeram uma viagem pelo Brasil. Nessa época Tarsila iniciou a fase “Pau-Brasil”, com cores e temas bastante tropicais e brasileiros, com elementos da fauna e da flora do Brasil, assim como máquinas e trilhos, simbolizando a modernidade urbana.

Os tons em pinturas de Tarsila, com grande intensidade e força, tem uma relação com a infância dela no interior de São Paulo. Há algo de rebelde e contestador em seu colorido excessivo. Embora tenha existido uma dose de influência da infância da pintora no campo, não pode ser considerada uma pintora rural.

Em 1926 Tarsila e Oswald se casam e ela realiza a sua primeira exposição individual, na Galeria Percier, em Paris e em 1928 ela pintou a obra que deu início ao Movimento Antropofágico (que propunha a digestão de influências estrangeiras e o desenvolvimento de uma arte nacional), o Abaporu, que traduzido da linguagem indígena quer dizer “homem que come carne humana”. Em julho de 1929, na cidade do Rio de Janeiro, Tarsila expõe suas telas pela primeira vez no Brasil. A crise da bolsa nos Estados Unidos, nesse ano afeta as economias da família de Tarsila. Ela perde sua fazenda e também ela e Oswald de Andrade se separam e ele casa-se com Patrícia Galvão, chamada de Pagu. Essas perdas afetam muito Tarsila e ela passa a dedicar-se ainda mais à sua arte, tendo em 1930 conseguido o cargo de conservadora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, cargo que perdeu com a ascensão de Getúlio Vargas.

Tarsila entrou para o Partido Comunista Brasileiro em 1931. Para conhecer a União Soviética, vendeu alguns quadros e foi para lá com o psiquiatra Osório César, seu novo marido. Na URSS foram para Moscou, Leningrado e Odessa. Eles também conheceram outras cidades em países europeus, como Belgrado e Berlim.  

Quando esteve em Paris nos anos 30 Tarsila solidarizou-se com a classe operária francesa. Trabalhou como pintora de paredes e portas e como operária da construção. Foi dessa forma que conseguiu dinheiro para voltar ao Brasil. Ela estava com sérias dificuldades financeiras por causa da crise econômica que atingia muitos países e que afetou também as famílias de cafeicultores brasileiras, como a dela. Pouco depois de chegar ao Brasil, devido à sua participação no PCB e sua viagem à URSS,  é presa, acusada de ser subversiva. Em 1933  pinta o quadro “Operários” e começa uma fase mais social em sua pintura. Outro quadro nessa temática foi o quadro “Segunda Classe”. Ainda nos anos 30, o escritor Luis Martins, que era 20 anos mais novo que ela, passa a ser companheiro de pinturas e eles se envolvem sentimentalmente, o que leva Tarsila a se separar de seu marido Osório e casar-se como Luís, com quem foi casada até o início da década de 50. 

Nos anos 40, voltando a estilos de pintura de fases anteriores, Tarsila expõe nas Primeira e Segunda Bienais de São Paulo. Em 1960 há uma exposição retrospectiva de suas obras no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Em 1963 há exposição de obras suas em sala especial na Bienal de São Paulo. Em 1964 ela se apresenta na 32ª Bienal de Veneza.

Tarsila em 1965 teve de fazer uma cirurgia na coluna, mas devido a um erro médico ela não pôde mais andar, tendo que passar a usar cadeira de rodas. Sua filha Dulce faleceu em 1966, o que a abalou muito. Esse acontecimento influencia na aproximação de Tarsila do espiritismo. Começa a vender quadros de sua autoria e a doar o dinheiro para uma instituição espírita, tendo se tornado amiga de Chico Xavier. Ela faleceu em 17 de janeiro de 1973 e foi sepultada no Cemitério da Consolação, em São Paulo, aos 86 anos de idade.

A atriz Eliane Giardini a interpretou nas minisséries da Tv Globo Um Só Coração (2004) e JK (2006). E antes foi interpretada por Esther Góes no filme Eternamente Pagu, de 1987. Em 2003 foi encenada a peça teatral Tarsila, que foi escrita por Maria Adelaide Amaral entre 2001 e 2002. A peça foi publicada como livro em 2004. A União Astronômica Internacional em 20 de novembro de 2008em homenagem à Tarsila atribuiu o nome “Amaral” a uma cratera do planeta Mercúrio. E nesse ano também foi lançada uma catalogação completa das obras de Tarsila patrocinada pela Petrobrás, em três volumes, pela Base 7 Projetos Culturais, contando com as parcerias da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura e Governo do Estado de São Paulo.

Sobre a obra de Tarsila Abaporu, ela disse em entrevista à revista Veja, em fevereiro de 1972: “(...) Eu quis fazer um quadro que assustasse o Oswald, sabe? que fosse uma coisa mesmo fora do comum. Aí é que vamos chegar no Abaporu. Eu mesma não sabia por que que eu queria fazer aquilo… depois é que eu descobri. O Abaporuera aquela figura monstruosa que o senhor conhece, não é? a cabecinha, o bracinho fino apoiado no cotovelo, aquelas pernas compridas, enormes, e junto tinha um cacto que dava a impressão de um sol como se fosse também uma flor e ao mesmo tempo um sol e então quando viu o quadro o Oswald ficou assustadíssimo e perguntou: Mas o que é isso? Que coisa extraordinária! Aí imediatamente telefonou para o Raul Bopp, que estava aqui, e disse: Venha imediatamente aqui que é pra você ver uma coisa! Aí o Bopp foi lá no meu atelier, ali na rua Barão de Piracicaba, um solar muito bonito que meu pai tinha comprado recentemente, o Bopp assustou-se também e o Oswald disse: Isso é como uma coisa como se fosse um selvagem, uma coisa do mato, e o Bopp foi da mesma opinião. Aí eu quis dar um nome selvagem também ao quadro, porque eu tinha um dicionário de Montoia, um padre jesuíta que dava tudo. Para dizer homem, por exemplo, na língua dos índios era Abá. Eu queria dizer homem antropófago, folheei o dicionário todo e não encontrei, só nas últimas páginas tinha uma porção de nomes e vi Puru e quando eu li dizia homem que come carne humana, então achei, ah, como vai ficar bem,Abaporu. E ficou com esse nome.”   Ainda sobre essa obra ela falou quando perguntada na entrevista se o Abaporu parecia coisa de pesadelo: Engraçado o senhor falar nisto, eu gosto de inventar formas assim de coisas que eu nunca vi na vida, mas não sabia por que que eu tinha feito o Abaporu daquela forma. Eu me perguntava: Mas como é que eu fiz isto? Depois uma amiga que era casada com o prefeito me dizia: Sempre que eu vejo Abaporu; me lembro de uns pesadelos que eu tenho, e eu então liguei uma coisa a outra, disse que devia ser uma lembrança psíquica ou qualquer coisa assim e me lembrei de quando nós éramos crianças na fazenda. Naquele tempo tinha muita facilidade de empregadas, aquelas pretas que trabalhavam para nós na fazenda, depois do jantar elas reuniam a criançada para contar histórias de assombração, iam contando da assombração que estava no forro da casa, eu tinha muito medo, a gente ficava ouvindo, elas diziam: daqui a pouco da abertura vai cair um braço, vai cair uma perna e nunca esperávamos cair a cabeça, abríamos a porta correndo e nem queríamos saber de ver cair a assombração inteira. Quem sabe o Abaporu é um reflexo disso?”

Depoimentos de Tarsila:

"Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado... Mas depois vinguei-me da opressão passando-as para minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou menos fortes conforme a mistura de branco. Pintura limpa, sobretudo, sem medo de cânones convencionais. Liberdade e sinceridade, uma certa estilização que a datava a época moderna. Contornos nítidos, dando a impressão perfeita da distância que separa um objeto de outro"..

“Depois de um certo tempo a gente começa então a desejar evadir-se dessa eternidade artística, que só se dirige ao intelecto e a reagir com a volta ao sentimental, ao humano, já que no complexo humano os sentidos também têm seus direitos".


A arte-educadora e artista visual Laura Aidar escreveu sobre Tarsila:

“Tarsila do Amaral foi uma importante artista plástica brasileira do movimento modernista.

Junto à Anita Malfatti, ela ficou conhecida como uma das mais importantes pintoras da primeira fase do modernismo.

E, ao lado dos escritores Oswald de Andrade e Raul Bopp, Tarsila inaugurou o movimento denominado “Antropofagia”.

Tarsila do Amaral nasceu em Capivari, interior de São Paulo, no dia 1 de setembro de 1886.

Filha de família abastada, passou a infância e adolescência com seus pais e sete irmãos na sua cidade natal.

Sua família havia herdado fazendas de seu avô, José Estanislau do Amaral, conhecido como “o milionário”. (...)”

Segundo a autora Dilva Frazão:

“(...) Em 1923, Tarsila volta à Europa e mantem contato com os modernistas que lá se encontravam, são intelectuais, pintores, músicos e poetas, entre eles Oswald de Andrade.

Estudou com Albert Gleizes e Fernand Léger, grandes mestres cubistas. Manteve estreita amizade com BlaiseCendrars, poeta franco-suíço que visitou o Brasil em 1924.

Em 1925, estando em Paris, Oswald de Andrade lançou o volume de poesias “Pau-Brasil”, com ilustrações de Tarsila.

Em 1926, Tarsila casou-se com Oswald de Andrade e no mesmo ano a artista realizou sua primeira exposição individual na Galeria Percier, em Paris.

Embora não tenha participado diretamente da “Semana de 22”, Tarsila se integrou com os intelectuais modernistas.

Fez parte do "Grupo dos Cinco", juntamente com Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti del Picchia.

Em 1929 expõe individualmente pela primeira vez no Brasil, no Palace Hotel em São Paulo.

Em 1930, Oswald de Andrade deixa Tarsila e passa a viver com Pagu. Deprimida, durante um ano produziu uma única tela intitulada “Composição (Figura Só)”.

Tarsila do Amaral foi uma das artistas plásticas mais importantes da primeira fase do Modernismo, concretizando em sua obra todas as aspirações de vanguarda formuladas pelo grupo.

Sua obra atravessou três fases denominadas: “Pau-Brasil”, “Antropofágica” e “Social”.

A primeira fase, “Pau-Brasil”, teve início em 1924, quando Oswald de Andrade divulgou o “Manifesto Pau Brasil” defendendo o nacionalismo.

A artista rompeu completamente com o conservadorismo e sua obra encheu-se de formas e cores assimiladas em sua viagem de “redescoberta do Brasil”, realizada em Minas Gerais, com seus amigos modernistas.

Tarsila explorou os temas tropicais e exalta a flora e a fauna, as ferrovias e as máquinas, símbolos da modernidade urbana. São exemplos dessa época as telas: A Feira (1924); A Estação Central do Brasil (1924); O Pescador (1925).

A segunda fase da obra de Tarsila do Amaral, denominada “Antropofágica”, teve origem no mais radical de todos os movimentos do período modernista: “Movimento Antropofágico” que foi inspirado no quadro “Abaporu” (1928) (antropófago, em tupi), que Tarsila oferecera a Oswald como presente de aniversário.

Partidários de um primitivismo crítico, os antropófagos propunham que a cultura estrangeira fosse devorada, aproveitando dela suas inovações artísticas, porém sem perder nossa própria identidade cultural. Exemplos dessa fase:Abaporu (1928)Urutu (1928);Antropofagia (1929).

A terceira e última fase da obra de Tarsila do Amaral, denominada “Social”, teve início em 1933, com a obra, “Operários”, onde sua criação está voltada para os temas sociais da época e a situação dos trabalhadores. São dessa fase as obras:Operários (1933);Segunda Classe (1933); Crianças do Orfanato (1935).

Tarsila pintou dois painéis em sua carreira: “Procissão do Santíssimo” (1954), para as comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo e “Batizado de Macunaíma” (1956), para a Editora Martins.

Entre 1934 e 1951, Tarsila manteve um relacionamento com o escritor Luís Martins. De 1936 a 1952, trabalhou como colunista nos Diários Associados onde ilustrava retratos de grandes personalidades. Em 1951 participou da I Bienal de São Paulo. Em 1963 teve uma sala especial na VII Bienal de São Paulo e no ano seguinte teve participação especial na XXXII Bienal de Veneza.

Tarsila do Amaral faleceu em São Paulo, no dia 17 de janeiro de 1973.

Outras Obras de Tarsila do Amaral: Pátio, Com Coração de Jesus, 1921;A Espanhola, 1922;Chapéu Azul, 1922;Margaridas de Mário de Andrade, 1922;Árvore, 1922;O Passaporte, 1922;Retrato de Oswald de Andrade, 1922;Retrato de Mário de Andrade, 1922;Estudo, 1923;Manteau Rouge, 1923;Rio de Janeiro, 1923;A Negra, 1923;Caipirinha, 1923;Figura Azul, 1923;Auto Retrato, 1924;Morro da Favela, 1924;A Família, 1925;Palmeiras, 1925;Religião Brasileira, 1927;A Boneca, 1928;Cartão Postal, 1928;Floresta, 1929;Retrato do Padre Bento, 1931;O Casamento, 1940;Procissão, 1941;Terra, 1943;Primavera, 1946;Praia, 1947;Criança, 1949;Costureiras, 1950;Porto I, 1953;Procissão, 1954;A Metrópole, 1958;Porto II, 1966;Religião Brasileira IV, 1970.”

Opiniões sobre Tarsila de Amaral:

"As fases pau-brasil e antropofágica de Tarsila são, sem sombra de dúvida, os pontos culminantes de sua carreira como pintora e as responsáveis pela sua inscrição na história da arte no Brasil. Elas sintetizam, plasticamente, o seu relacionamento genuíno com a terra, e sua picturalidade, como bem afirmou Haroldo de Campos, atualizada pelo contato com o cubismo, permitiu-lhe 'extrair essa lição não de coisas, mas de relações, que lhe permitiu fazer uma leitura estrutural da visualidade brasileira. Reduzindo tudo a poucos e simples elementos básicos, estabelecendo novas e imprevistas relações de vizinhança na sintagmática do quadro, Tarsila codificava em chave cubista a nossa paisagem ambiental e humana, ao mesmo tempo que redescobria o Brasil nessa releitura que fazia, em modo seletivo e crítico (sem por isso deixar de ser amoroso e lírico), das estruturas essenciais de uma visualidade que a rodeava desde a infância fazendeira' (...)".      Aracy Amaral


"A relação de Tarsila com a obra de Léger demonstra bem a inteligência com a qual analisa a arte francesa. O que ela irá absorver de determinante no sistema de Léger é a utilização do modelo da máquina. Mas a metáfora segundo a qual Léger irá desenvolver seu trabalho tem por objeto a sociedade industrial. Tarsila fará da 'brasilidade' o seu traço distintivo dessa formulação, adotando a 'linguagem de máquina' (assim como Oswald de Andrade se utiliza da linguagem telegráfica) como um desejo de atualização, no sentido de situar a percepção do Brasil a partir da ótica aberta pela industrialização. A máquina no seu trabalho não será apenas uma referência ao presente, será igualmente a tentativa de apreender o universo simbólico brasileiro, por um olhar compatível com seus aspectos mais contemporâneos. Em termos formais, as distinções que esta sua postura produzirá afastarão Tarsila de uma atitude servil diante do modelo de Léger. Neste último, as cores, quase sempre primárias ou com tonalidades metálicas, procuram o máximo de contrastes, como se apresentam na vida urbana. Seu desenho segue o mesmo sentido da sua pintura, sendo a cor substituída por claros e escuros que mantêm o contraste e sugerem volumes, como se fossem uma preparação para a tela. Já o desenho de Tarsila opera mais como uma anotação que busca, através da linha, revelar a estrutura definidora do objeto. Assim, o traço se desenvolve numa linha que flui e vai num ritmo suave construindo o objeto, ao mesmo tempo em que ocupa e organiza a superfície do papel".

Carlos Zílio

 

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História


Figura 1: 

https://www.google.com/search?q=imagens+de+tarsila+do+amaral&sxsrf=APq-WBseurCx8ZrObKiqqffof2Azh_0LzQ:1645479355827&tbm=isch&source


Figura 2: 

https://www.google.com/search?q=imagem+de+obras+de+tarsila+do+amaral&sxsrf=APq-WBvj5cbEWaro3aMv4VIDc-ARHMPYfw:1645479676830&tbm


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A Síndrome de Estocolmo

 






Neste artigo irei tratar de um aspecto psicológico, um estado psicológico particular, que pode acontecer em determinadas ocorrências de grande pressão psicológica como se vê em sequestros ou outras situações abusivas. Este estado está relacionado a casos de abusos e de sequestros. Não sendo uma doença mental reconhecida e aceita pelos psiquiatras. Estou me referindo à chamada Síndrome de Estocolmo. Este nome vem de um caso que ocorreu em um sequestro de seis dias na capital da Suécia, Estocolmo, em 1973. O criminologista Nils Berejot, diagnosticou o estado psicológico das vítimas como um síndrome que levou o nome da cidade onde aconteceu o sequestro. Essas pessoas afetadas pelo sequestro se viram envolvidas afetivamente com o sequestrador e seu comparsa. A situação chegou a um ponto de uma refém xingar a polícia em defesa dos assaltantes e depois deles presos ela manteve ainda contato regular com os mesmos. Essa situação causou espanto na época porque as vítimas tinham sido submetidas a um estado de violência psicológica grave. Essas pessoas passaram a demonstrar uma identificação, uma lealdade e solidariedade com o principal agressor. Em casos relacionados a esta síndrome há pequenos gestos gentis dos raptores que são amplificados com frequência devido à falta de uma consciência do refém sobre a realidade e o perigo existente. As tentativas de libertação podem ser encaradas como uma ameaça pelos reféns. É o grande estresse físico causado pela situação que causa sintomas. Há um duplo comportamento de afetividade e ódio ao mesmo tempo por parte das vítimas em relação ao raptor. Para especialistas, isto representa uma estratégia de sobrevivência das vítimas. É uma estratégia da mente para se proteger. Parte da mente consegue ficar alerta ao perigo e isso pode levar parte das vítimas a tentar fugir do sequestrador. A vítima não tem consciência do processo da síndrome. Esta síndrome também é conhecida como Vinculação Afetiva de Terror ou Traumática

O caso do assalto a banco em Estocolmo, iniciouem 23 de agosto de 1973 quando Jan-Erik “Janne” Olsson, armado com uma submetralhadora e explosivos invadiu o banco Kredit banken, no centro de Estocolmo. Ele começou a ação atirando para o alto, fazendo três funcionárias como reféns e depois também um funcionário que estava escondido em um depósito. As exigências dele eram: a soltura de outro criminoso, Clark Olofsson; um carro; que lhe fossem entregues 3 milhões de coroas suecas; e que fosse providenciado um caminho que ele pudesse usar para sair para outro país. As negociações foram demoradas. A soltura de Olofsson foi realizada e ele foi levado ao banco. Durante os seis dias que durou o sequestro, os reféns e o sequestrador jogavam cartas e conversavam. A refém Kristin Enmark, de 23 anos, na ocasião que estava no banco disse ao primeiro ministro da Suécia por telefone:

“Confio plenamente nele, viajaria por todo o mundo com eles [os reféns e o assaltante que chegou posteriormente”.

Ela concordava com a proposta (rejeitada pela polícia) do sequestrador de que ele sairia de carro levando dois reféns. Também ela defendia verbalmente o sequestrador e chegou a ofender a polícia em uma declaração a uma rádio. Ela, mesmo 40 anos após o sequestro, ainda permanecia se correspondendo com um dos sequestradores, Olofsson.

No fim de toda a situação, a polícia conseguiu entrar por um buraco no teto para salvar os sequestrados, que se postaram em frente ao sequestrador para impedir que fosse agredido pela polícia. Quando a polícia finalmente já tinha prendido o criminoso, os quatro sequestrados abraçaram o assaltante e seu companheiro criminoso que tinha chegado posteriormente ao banco. Jannie Olson, o autor do sequestro, recebeu a visita de dois reféns na prisão. Sven, o único homem entre os reféns, que foi ameaçado durante o sequestro, ainda assim ficou confuso, tendo que fazer um esforço mental para se convencer de que os sequestradores não eram seus amigos e que tinham cometido um crime. Olofsson foi condenado na época do crime a 6 anos de prisão e o líder, Olsson, a 10 anos. Olsson afirmou em entrevistas que não foi capaz de matar os reféns por ter ficado próximo deles.

Esta síndrome também se faz presente em relacionamentos abusivos, familiares ou amorosos. Além de sua presença em sequestros pode ser detectada em abuso infantil, roubo, estupro e violência doméstica, tráfico humano, terror e opressão política e religiosa, cenários de guerra, sobreviventes de campos de concentração, relações de trabalho extremas etc. A mente cria uma defesa que a mantem acreditando que, mesmo com toda a situação de tensão e perigo, o agressor está fazendo algo de bom. A vítima interpreta algumas atitudes do agressor como benéficas. Em caso de extrema intimidação a vítima acha que não pode escapar e se sente muito vulnerável. A mente humana tenta formas de aliviar a tensão e neste estado de confusão mental a vítima pode ver o agressor como quem está dando satisfação, criando assim uma relação afetiva entre vítima e agressor.

A vítima procura evitar comportamentos que causem um desagrado ao agressor e pode fazer interpretações equivocadas em relação ao agressor, por exemplo se ele realiza atos de gentileza e educação a vítima pode achar que o agressor está sendo simpático e iniciar um processo de identificação que cria uma separação da realidade de violência que de fato está acontecendo. A vítima pode acabar criando um relação até mesmo de amizade com o agressor, podendo vê-lo como um protetor, que às vezes é a única companhia da vítima.

Não há um registro dessa síndrome como patologia específica. Análises do ponto de vista psicanalítico fazem referência a questões de experiências na infância com familiares e cuidadores. Há pessoas que sob determinadas condições de abuso desenvolvem sentimentos de afeto e apego a agressores ou sequestradores devido a essas questões anteriores. Há também a hipótese de formação de um mecanismo irracional de defesa em algumas pessoas que projetam sentimentos afetivos na figura do sequestrador ou abusador que possam causar alguma forma de tentar “amenizar” ou “negociar” para diminuir a tensão entre abusador ou sequestrador e vítima.

Há fatores que podem influenciar o desenvolvimento da síndrome como o tipo de personalidade e história pessoal da vítima; a necessidade de aprovação por pessoas que tem poder; o tempo da vítima com o agressor; a identificação com o agressor; grande necessidade de segurança e esperança da vítima que a faz menosprezar aspectos negativos da situação e do agressor.

 

Outros casos famosos:

Um caso relacionado à síndrome de Estocolmo que ficou muito famoso é o de Patty Hearst, em 1974. Ela foi sequestrada em um assalto a banco pelo grupo de extrema-esquerda Exército Simbionês de Libertação. Após sua captura, ela foi libertada e juntou-se ao grupo, fazendo parte de assaltos a bancos. Ela chegou a ser presa pela polícia e depois tornou-se atriz. 

A austríaca Natascha Kampusch, foi sequestrada em Viena aos dez anos de idade em março de 1998. Ela foi sequestrada e ficou em cativeiro por 8 anos, em condições horríveis. Ela sofreu muitas agressões físicas e psicológicas. Ela citou no livro que escreveu:

“Eu ainda era apenas uma criança, e precisava do consolo do toque (humano). Então, após alguns meses presa, eu pedi a meu sequestrador que me abraçasse”.

Também é citado por alguns especialistas o caso de Patrícia Abravanel, filha de um empresário brasileiro famoso. Em 2001 ela foi sequestrada e ficou sete dias em cativeiro. Após sua libertação falou sorridente em uma entrevista e disse que perdoava os sequestradores. No seu relato mencionou que ao estar com uma Bíblia um dos sequestradores escreveu: "Você é a melhor pessoa do mundo". Disse ela: "Eles falaram que Deus era poderoso, que eles não estavam entendendo como não conseguiam colocar a mão em mim". Ela negou que tivesse sido afetada pela síndrome.

As pessoas que passaram por situações como as citadas nos casos mencionados tiveram momentos muito difíceis. Quem passou por essas experiências traumáticas precisa de apoio emocional de familiares, amigos. Também é recomendável o tratamento psicoterápico. O terapeuta poderá identificar o que levou ao desenvolvimento da síndrome e procurar junto ao paciente a superação do trauma.

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História e Psicólogo.

 

Figura:

https://www.google.com/search?sxsrf=APq-WBtKOmQpYPyxritdykQiYTCIuqF9BA:1644971627500&source=univ&tbm=isch&q=imagem+de+sindrome+de+estocolmo

 


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

A escritora norte-americana Elisabeth Bishop

 





 


A poeta (ou poetisa) Elisabeth Bishop, nasceu no dia 8 de fevereiro de 1911, em Worcester, Massachusetts. Era filha de William Thomas Bishop, que morreu antes dela completar um ano e de Gertrude Bulmer Bishop, que foi internada em um hospital psiquiátrico quando ela tinha cinco anos. Na infância, Elisabeth foi internada devido a transtornos mentais (a mãe de Elisabeth morreu em 1934, depois de muitos anos internada em instituição psiquiátrica) e foi morar com os avós maternos na Nova Escócia, Canadá. Na época sofreu com comportamentos abusivos de um tio. Posteriormente, os avós paternos, com uma vida financeira boa, ganharam a guarda dela e ela foi então viver com eles em Worcester. Não foi feliz nesse período e teve problemas de asma e de eczema. Fez o curso secundário em um colégio interno feminino, em Natick, Massachusetts. Lá ela revelou talento para a música, mas devido a sua timidez não seguiu como concertista.. Na década de 1920 esteve na França com sua companheira Louise Crane, herdeira de uma família rica..

Em 1929, antes da quebra da bolsa de valores, ela ingressou no Vassar College, uma instituição de prestígio, onde ela estudou por quatro anos inglês e literatura, tendo fundado, junto com quatro colegas, no último ano de estudos, a revista literária Com Spirito. Foi graças ao dinheiro que tinha sido aplicado anos antes pelo pai que Elisabeth pôde ter uma ótima educação.

Os primeiros poemas de Bishop tiveram forte influência de Moore, como também de George Herbert e Gerard Manley Hopkins. Foi nessa época que Elisabeth conheceu a poeta Marianne Moore, 24 anos mais velha, que se tornou sua mentora e amiga, que a influenciou a fazer parte do mundo da poesia, tendo Elisabeth desistido da aspiração de ser médica. A amizade entre elas durou até o ano da morte de Moore, em 1972.

Em 1934, já formada, Elisabeth foi morar na cidade de Nova Iorque. Entre os poemas dessa época há The Map e The Man-Moth. Morou depois na Flórida e viajou para outros países, como a França, em 1937, onde passou seis meses e o México, onde ficou nove meses, em 1943. Como escritora de poesias e contos publicou em 1946  North & South, seu primeiro livro de poesias e contos, que não teve muitos exemplares publicados, mas que foi bem avaliado pelo poeta e crítico Robert Lowell, que se tornou amigo dela. Elisabeth ganhou o prêmio de poesia Houghton Mifflin Prize, em 1946O crítico conceituado Randall Jarrell disse sobre os poemas de Bishop após a publicação de North and South: “todos seus poemas, como percebi, têm uma segunda escrita.”

Elisabeth Bishop tinha dificuldades financeiras para se manter como escritora e passou a depender de doações, empréstimos, prêmios etc.Em 1951 recebeu 2. 500 dólares do Bryn Mawr College. Nesse ano ela embarcou em um navio que ia para a Terra do Fogo, na Argentina. A intenção dela era navegar ao refor da América do Sul. O navio aportou em Santos. Ela desembarcou para ficar algum tempo no Brasil. Foi para o Rio de Janeiro visitar a cidade e também pessoas que ela conhecia que tinham morado em Nova Iorque. Mas ela teve problemas de saúde (intoxicação alimentar) e não teve condições de voltar a seguir viagem com o navio. A brasileira Maria Carlota de Macedo Soares, conhecida como Lota, que Elisabeth tinha conhecido em Nova Iorque, procurou ajudar a norte-americana. Lota era arquiteta e paisagista autodidata, que tinha feito muitas viagens e contando com consideráveis recursos financeiros, sendo uma das herdeiras do jornal “Diário Carioca”. Um dos amigos famosos de Lota era o jornalista Carlos Lacerda, que chegou a ser governador do Estado da Guanabara.

Lota e Elisabeth Bishop se envolveram afetivamente e Bishop foi morar perto de Lota no sítio de Alcobacinha, em Petrópolis. Elisabeth tinha um estúdio, onde escrevia e pintava. O Brasil teve importância na vida dela como autora, influenciando na temática de poemas, contos e cartas. No tempo que esteve no Brasil, aconteceram fatos históricos importantes como o suicídio de Getúlio Vargas, a construção de Brasília, a queda de Jânio Quadros e o golpe militar de 31 de março de 1964.

Elisabeth viajou pelo Brasil, em especial quando juntava material para seu livro documentário Brazil. Ela também retratou a cultura brasileira na sua poesia, como quando escreveu O Ladrão da Babilônia, uma balada inspirada na visão dela de um homem fugindo da polícia no Rio de Janeiro, que ela chamou de Babilônia. Segundo Girough, que escreveu a biografia da escritora, Bishop dedicou-se à pintura e à poesia e não buscou fazer parte do alto círculo de amizades de Lota, que tinha ideias ligadas ao partido brasileiro UDN. O biógrafo também mencionou que a escritora manteve-se ligada ao que acontecia na cultura dos Estados Unidos. Ela costumava enviar para esse país seus poemas e contos para publicação.  Era simpática ao Partido Democrata nos Estados Unidos e crítica do sistema de segregação racial norte-americano. Embora não detivesse em se concentrar em política, não deixava de ser uma crítica, possuindo uma sutil e perspicaz percepção das contradições brasileiras. Fez poemas sobre a paisagem de Santarém e sobre os pobres urbanos do Rio de Janeiro, com a sátira social do poema Pink Dog.

Elisabeth e Lota moravam em Petrópolis e iam com frequência para a cidade do Rio de Janeiro. Também passavam algum tempo em Ouro Preto. Em 1961 houve o início do enfraquecimento da relação entre as duas, quando Lota passou a ficar mais no Rio de Janeiro que em Petrópolis, pois estava envolvida em um projeto paisagístico de Roberto Burle Marx. Nesses períodos em que estava só, Bishop ia algumas vezes a Ouro Preto, tendo comprado uma casa, dando o nome a ela de “Casa Mariana”, para homenagear a poeta Marianne Moore. Esses tempos sozinha influenciavam em um estado depressivo de Elisabeth e ela foi se habituando a consumir bebida alcoólica. Lota, por sua vez, também tinha seus problemas de saúde mental.

Em 1966 houve um convite para Elisabeth para lecionar na Universidade de Washington, em Seattle. E em 1967 passou um tempo em Nova Iorque. Lota  ia para um encontro com Elisabeth, mas na noite que chegou na cidade tomou uma dose forte de tranquilizantes e entrou em coma por cinco dias, vindo a falecer. Após a morte de Lota, Elisabeth foi passar um tempo em São Francisco e cerca de um ano depois foi para Ouro Preto. Ela voltaria a essa cidades outras vezes até 1974. Mas, Elisabeth nessas vindas ao Brasil vinha já com uma nova companheira (tinha começado uma relação com Alice Methfessel, que durou até a morte da escritora) e  passou a sofrer hostilidades ligadas a preconceitos, inveja e acusações. Devido a essa situação, Bishop resolveu não vir mais ao Brasil, ensinou na Universidade de Washington e foi convidada a ser professora na Universidade de Harvard, passando a morar em Boston. Também foi professora na New York University. O seu apartamento continha diversos artefatos brasileiros. Ela muitas vezes escreveu para a revista The New Yorker e fez várias conferências. No fim da vida era professora no Massachusetts Institute of Technology. Para que um poema tivesse um sentido de espontaneidade, ela chegava a gastar meses ou anos. Seus poemas muitas vezes refletem questões pessoais, com suas angústias e dificuldades.  O filme de Bruno Barreto, Flores Raras, de 2013, foi baseado no romance de Elisabeth e Lota, em Petrópolis, que durou de 1951 a 1965. Até hoje há críticas ao posicionamento político de Bishop em 1964, pois ela demonstrou apoio ao golpe militar daquele ano. 

Em seis de outubro de 1979, por causa de um aneurisma cerebral, Elisabeth Bishop faleceu. Ela ganhou os seguintes prêmios em vida:

Prémio Pulitzer de Poesia (1956)
National Book Award (1970)
Prêmio Literário Internacional Neustadt (1976)
National Book Critics Circle Award (1976)

Segundo a obra “Brasiliana da Biblioteca Nacional”:  “Representante ilustre da poesia moderna norte-americana, Bishop residiu no Brasil como estrangeira voluntariamente exilada de seu país, mas profundamente conectada com o movimento cultural norte-americano», principalmente com o poeta Robert Loewe e com sua mentora Marianne Moore. (....) «Traduziu poemas dos principais expoentes do modernismo brasileiro e manteve relações cordiais com vários desses artistas.»

Segundo a biógrafa Megan Marshall:

"Bishop mostra que a perda é uma experiência universal, e, ao escrever tão bem sobre esse tema, consegue criar, paradoxalmente, algo que perdura".

 

 A seguir alguns poemas de Elisabeth Bishop:

 

O mapa

Terra entre águas, sombreada de verde.
Sombras, talvez rasos, lhe traçam o contorno,
uma linha de recifes, algas como adorno,
riscando o azul singelo com seu verde.
Ou a terra avança sobre o mar e o levanta
e abarca, sem bulir suas águas lentas?
Ao longo das praias pardacentas
será que a terra puxa o mar e o levanta?

A sombra da Terra Nova jaz imóvel.
O Labrador é amarelo, onde o esquimó sonhador
o untou de óleo. Afagamos essas belas baías,
em vitrines, como se fossem florir, ou como se
para servir de aquário a peixes invisíveis.
Os nomes dos portos se espraiam pelo mar,
os nomes das cidades sobem as serras vizinhas
— aqui o impressor experimentou um sentimento semelhante
ao da emoção ultrapassando demais a sua causa.
As penínsulas pegam a água entre polegar e indicador
como mulheres apalpando pano antes de comprar.

As águas mapeadas são mais tranquilas que a terra,
e lhe emprestam sua forma ondulada:
a lebre da Noruega corre para o sul, afobada,
perfis investigam o mar, onde há terra.
É compulsório, ou os países escolhem as suas cores?
— As mais condizentes com a nação ou as águas nacionais.
Topografia é imparcial; norte e oeste são iguais.
Mais sutis que as do historiador são do cartógrafo as cores.

O iceberg imaginário

O iceberg nos atrai mais que o navio,
mesmo acabando com a viagem.
Mesmo pairando imóvel, nuvem pétrea,
e o mar um mármore revolto.
O iceberg nos atrai mais que o navio:
queremos esse chão vivo de neve,
mesmo com as velas do navio tombadas
qual neve indissoluta sobre a água.
Ó calmo campo flutuante,
sabes que um iceberg dorme em ti, e em breve
vai despertar e talvez pastar na tua neve?

Esta cena um marujo daria os olhos
pra ver. Esquece-se o navio. O iceberg
sobe e desce; seus píncaros de vidro
corrigem elípticas no céu.
Este cenário empresta a quem o pisa
uma retórica fácil. O pano leve
é levantado por cordas finíssimas
de aéreas espirais de neve.
Duelo de argúcia entre as alvas agulhas
e o sol. O seu peso o iceberg enfrenta
no palco instável e incerto onde se assenta.

É por dentro que o iceberg se faceta.
Tal como joias numa tumba
ele se salva para sempre, e adorna
só a si, talvez também as neves
que nos assombram tanto sobre o mar.
Adeus, adeus, dizemos, e o navio
segue viagem, e as ondas se sucedem,
e as nuvens buscam um céu mais quente.
O iceberg seduz a alma
(pois os dois se inventam do quase invisível)
a vê-lo assim: concreto, ereto, indivisível.
.


Chemin de fer

Sozinha nos trilhos eu ia,
coração aos saltos no peito.
O espaço entre os dormentes
era excessivo, ou muito estreito.

Paisagem empobrecida:
carvalhos, pinheiros franzinos;
e além da folhagem cinzenta
vi luzir ao longe o laguinho

onde vive o eremita sujo,
como uma lágrima translúcida
a conter seus sofrimentos
ao longo dos anos, lúcida.

O eremita deu um tiro
e uma árvore balançou.
O laguinho estremeceu.
 Sua galinha cocoricou.

Bradou o velho eremita:
“Amor tem que ser posto em prática!”
Ao longe, um eco esboçou
sua adesão, não muito enfática.


 

O cavalheiro de Shalott

Qual olho é o dele?

Qual membro é real

e qual está no espelho?

A cor é igual

à esquerda e à direita,

e ninguém suspeita

que esta ou aquela

perna, ou braço, seja

verdade ou impostura

nessa estranha estrutura.

A seu ver,

isso é prova garantida

de uma imagem refletida

ao longo desta linha

que chamamos de espinha.

 

Modesto, sentia

que sua pessoa

era metade espelho:

pois duplicar-se seria

um total destrambelho.

O vidro se prolonga

por sua mediana,

ou melhor, sua borda.

Mas ele não sabe direito

o que está dentro ou fora

da imagem refletida.

Não há muita margem de erro,

mas provar é impossível.

E se meio cérebro é reflexo

seu pensamento terá nexo?

 

Mas ele aceita sem problema

a parcimônia do esquema.

Se o espelho escorregar

vai ser de amargar —

só uma perna etc. Mas por ora

está apoiado na escora,

e ele anda e corre e pega a mão

com a outra. A sensação

de incerteza o deixa feliz,

ele diz.

Afirma também que gosta

de estar sempre a se reajustar.

No momento, eis o que tem a declarar:

“Metade basta.”

.


Cirque d´Hiver
É um brinquedo de corda digno de um rei
de uma outra era: cavalo e bailarina.
Um cavalo de circo, de olhos negros,
branco no pelo e na crina
Sobre ele vai montada a bailarina.

Na ponta dos pés, ela rodopia.
Tem um ramo de flores artificiais
na saia e no corpete de ouropel.
Sobre a cabeça, traz
um outro ramo de flores artificiais

A cauda do cavalo é puro Chirico.
É formal e melancólica sua alma.
Ele sente em seu dorso a perna leve
da bailarina calma
em torno da haste que a perfura, corpo e alma,

e lhe atravessa o corpo, saindo por fim
sob seu ventre como uma chave de lata.
Ele dá três passos, faz uma mesura,
anda mais um pouco, dobra uma das patas,
anda, estala, para e olha para mim.

A dançarina, a essa altura, está de costas.
O cavalo é o mais arguto dos dois.
Entreolhamo-nos, com certo desespero,
e dizemos depois:
“É, até aqui chegamos nós dois”.

 

Noturno

Da manga escura de um mágico

 os cantores de rádio espalham canções de amor

pela grama, sobre o orvalho noturno

E preveem para o futuro,

qual cartomantes, o que se quiser supor.

 

Mas na antena do estaleiro distingo

 observadores mais dignos

de apreciar o amor. Do alto de seu galho

cinco luzes vermelhas, remotas,

 se aninham; fênix silenciosas,

ardendo aonde nunca chega o orvalho.

 

 Insônia

A lua no espelho da cômoda

está a mil milhas, ou mais

(e se olha, talvez com orgulho,

porém não sorri jamais)

muito além do sono, eu diria,

ou então só dorme de dia.

 

Se o Mundo a abandonasse,

ela o mandava pro inferno,

e num lago ou num espelho

faria seu lar eterno.

— Envolve em gaze e joga

tudo que te faz sofrer no

 

poço desse mundo inverso

onde o esquerdo é que é o direito,

onde as sombras são os corpos,

e à noite ninguém se deita,

e o céu é raso como o oceano

é profundo, e tu me amas.

 

O banho de xampu

Os liquens – silenciosas explosões

nas pedras – crescem e engordam,

concêntricas, cinzentas concussões.

Têm um encontro marcado

com os halos ao redor da lua, embora

até o momento nada tenha mudado.

 

E como o céu há de nos dar guarida

enquanto isso não se der,

você há de convir, amiga,

que se precipitou;

e eis no que dá. Porque o Tempo é,

mais que tudo, contemporizador.

 

No teu cabelo negro brilham estrelas

cadentes, arredias.

Para onde irão elas

tão cedo, resolutas? 

– Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia

amassada e brilhante como a lua.

 

Chegada em Santos

Eis uma costa; eis um porto;

após uma dieta frugal de horizonte, uma paisagem:

morros de formas tão práticas, cheios - quem sabe? de autocomiseração,

tristes e agrestes sob a frívola folhagem,

 

uma igrejinha no alto de um deles. E armazéns,

alguns em tons débeis de rosa, ou de azul,

e umas palmeiras, altas e inseguras. Ah, turistas,

então é isso que este país tão longe ao sul

 

tem a oferecer a quem procura nada menos

que um mundo diferente, uma vida melhor, e o imediato

e definitivo entendimento de ambos

após dezoito dias de hiato?

 

Termine o desjejum. Lá vem o navio-tênder,

uma estranha e antiga embarcação,

com um trapo estranho e colorido ao vento.

A bandeira. Primeira vez que a vejo. Eu tinha a impressão

 

de que não havia bandeira, mas tinha que haver,

tal como cédulas e moedas - claro que sim.

E agora, cautelosas, descemos de costas a escada,

eu e uma outra passageira, Miss Breen,

 

num cais onde vinte e seis cargueiros aguardam

um carregamento de café que não tem mais fim.

Cuidado, moço, com esse gancho! Ah!

não é que ele fisgou a saia de Miss Breen,

 

coitada! Miss Breen tem uns setenta anos,

um metro e oitenta, lindos olhos azuis, bem

simpática. É tenente de polícia aposentada.

Quando não está viajando, mora em

Glens Falls, estado de Nova York. Bom. Conseguimos.

Na alfândega deve haver quem fale inglês e não

implique com nosso estoque de bourbon e cigarros.

Os portos são necessários, como os selos e o sabão,

 

e nem ligam para a impressão que causam.

Daí as cores mortas dos sabonetes e selos -

aqueles desmancham aos poucos, e estes desgrudam

de nossos cartões-postais antes que possam lê-los

 

nossos destinatários, ou porque a cola daqui

é muito ordinária, ou então por causa do calor.

Partimos de Santos imediatamente;

vamos de carro para o interior.

 

 

O Tatu

para Robert Lowell

 

Estamos no período junino,

e à noite balões de papel

surgem – frágeis, ígneos, clandestinos. 
Vão subindo ao céu,

 

rumo a um santo que aqui 

ainda inspira devoção,

e se enchem de uma luz avermelhada

que pulsa, como um coração. 

 

Lá no céu, se transformam

em pontos de luz mais ou menos

iguais às estrelas – isto é, aos planetas

coloridos, Marte ou Vênus.

 

Se venta, eles piscam, estrebucham;

sem vento, sobem ligeiros

rumo às varetas cruzadas 

da pipa estrelar do Cruzeiro

 

do Sul, e deixam este mundo

para trás, solenes, altivos,

ou una correnteza os puxa 

pra baixo, e se tornam um perigo. 

 

Ontem caiu um grande aqui perto 

na encosta de pedra nua. 

Quebrou como um ovo de fogo.

A chama desceram. Vimos duas

 

corujas fugindo do ninho,

os dorsos das asas ariscas

tingidas de um rosa vivo, 

guinchando até sumirem de vista. 

 

O velho ninho se incendiara.

Sozinho, em polvorosa,

um tatu reluzente fugiu, 

cabisbaixo, salpicado de rosa, 

 

depois de um ser de orelhas curtas,

por estranho que pareça, um coelho.

Tão macio! – pura cinza intangível 

com olhos fixos, dois pontos vermelhos. 

 

Ah, mimetismo frágil, onírico!

Fogo caindo, um escarcéu

e um punho cerrado, ignorante

e débil, voltado contra o céu!

 

Uma arte

A arte de perder não é nenhum mistério; 

Tantas coisas contêm em si o acidente 

De perdê-las, que perder não é nada sério.

 

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, 

A chave perdida, a hora gasta bestamente. 

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

Depois perca mais rápido, com mais critério: 

Lugares, nomes, a escala subseqüente 

Da viagem não feita. Nada disso é sério.

 

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero 

Lembrar a perda de três casas excelentes. 

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

Perdi duas cidades lindas. E um império 

Que era meu, dois rios, e mais um continente. 

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

 

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo 

que eu amo) não muda nada. Pois é evidente 

que a arte de perder não chega a ser mistério 

por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

.

 

 

 

Cadela Rosada

[Rio de Janeiro]

 

Sol forte, céu azul. O Rio sua.

Praia apinhada de barracas. Nua,

passo apressado, você cruza a rua.

 

Nunca vi um cão tão nu, tão sem nada,

sem pelo, pele tão avermelhada...

Quem a vê até troca de calçada.

 

Têm medo da raiva. Mas isso não

é hidrofobia — é sarna. O olhar é são

e esperto. E os seus filhotes, onde estão?

 

(Tetas cheias de leite.) Em que favela

você os escondeu, em que ruela,

pra viver sua vida de cadela?

 

Você não sabia? Deu no jornal:

pra resolver o problema social,

estão jogando os mendigos num canal.

 

E não são só pedintes os lançados

no rio da Guarda: idiotas, aleijados,

vagabundos, alcoólatras, drogados.

 

Se fazem isso com gente, os estúpidos,

com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,

o que não fariam com um quadrúpede?

 

A piada mais contada hoje em dia

é que os mendigos, em vez de comida,

andam comprando boias salva-vidas.

 

Você, no estado em que está, com esses peitos,

jogada no rio, afundava feito

parafuso. Falando sério, o jeito

 

mesmo é vestir alguma fantasia.

Não dá pra você ficar por aí à

toa com essa cara. Você devia

 

pôr uma máscara qualquer. Que tal?

Até a quarta-feira, é Carnaval!

Dance um samba! Abaixo o baixo-astral!

 

Dizem que o Carnaval está acabando,

culpa do rádio, dos americanos...

Dizem a mesma bobagem todo ano.

 

O Carnaval está cada vez melhor!

Agora, um cão pelado é mesmo um horror...

Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô...!

 




Acalanto

 

 

Nana nana.

Nana, dorme o adulto

E a criança dorme.

Ao largo, ferido de morte, naufraga

O navio enorme.

 

Nana nana.

Batalhem os povos

E morram: não faz diferença.

A sombra do berço desenha uma imensa

Gaiola no muro.

 

Nana nana.

Breve a guerra acaba.

Solta esse brinquedo

Bobo, e apanha a lua,

Que é melhor brinquedo.

 

Nana nana.

Se acaso disserem

Que não tens juízo,

Não dês importância:

Sorri o teu sorriso.

 

Nana nana.

Nana, dorme o adulto

E a criança dorme.

Ao largo, ferido de morte, naufraga

 

 ____________________________________

Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História

 


Figura:https://www.google.com/search?q=imagem+de+elizabeth+bishop.&sxsrf=APq-WBvHLjCeIfn3ldT8duhDnUBIQI6FUQ:1644628870497&tbm=isch&source=