Está sendo muito noticiada a tensão
existente entre a Ucrânia e a Rússia, outrora repúblicas da extinta União
Soviética. Esta situação envolve também a União Europeia e os Estados Unidos.
Na verdade a questão abrange aspectos geopolíticos, econômicos, culturais e
militares.
A Ucrânia é um país de grandes recursos
agrícolas (considerada o “celeiro Europa" devido à
fertilidade de suas terras). Está localizado na Europa Oriental com 603 628
quilômetros quadrados (o maior país totalmente no continente europeu) cerca de 44 milhões de
habitantes segundo informação do ano de 2020. Faz fronteira com a leste e
nordeste com a Rússia; a noroeste com a Bielorússia; a oeste com com Polônia,
Eslováquia e Hungria; a sudoeste com Romênia e Moldávia e ao sul e sudeste com
o Mar Negro e o Mar de Azov.
Historicamente, há aproximadamente 4
mil anos, o território ucraniano começou a ser habitado.
É possível que a região seja onde se começou a se domesticar cavalos e onde se
iniciaram línguas indo-europeias. Na Idade Média foi um núcleo cultural dos
eslavos do leste: a Rússia de Kiev. Esse Estado era poderoso nos
séculos IX, X, XI e XII e estabeleceu os fundamentos das identidades nacionais
ucraniana e outras nações eslavas orientais. A capital era
Kiev. Havia uma elite política formada por varegues (vindos
da Escandinávia), que se integraram à população local e formaram a
dinastia ruríquida. Vários príncipes dessa dinastia dominavam
a região e não raramente guerreavam entre si. O principado abrangia terras das
atuais Ucrânia, Bielorrússia e da Rússia europeia. No reinado de Vladimir, o
Grande (980-1015), o Estado de Kiev se aproximou do cristianismo do Império
Bizantino e no reinado de Jeroslau I, filho de Vladimir, houve um maior poder
militar e cultural.
No século XIII o
território da Ucrânia ficou fragmentado e houve a invasão por povos diversos,
como os mongois, que a dividiram e passaram a domina-la. No século XIV, o rei
da Polônia, Casimiro IV, conquistou grande parte da região e também os lituanos
fizeram conquistas no território da antiga Rússia de Kiev. No século XVI houve
a União de Lublim, criando a Comunidade Polaco-Lituana que
dominou o território ucraniano.
Em 1648, após uma
grande rebelião cossaca contra o rei polonês João Casimiro, houve uma partilha
da Ucrânia entre a Polônia e a Rússia. Mas com as partilhas da Polônia no
século XVIII entre a Prússia, a Aústria e a Rússia, houve una divisão do
território ucraniano entre Aústria e Rússia. Os ucranianos ligados ao Império
Russo participaram de guerras contra monarquias ocidentais e contra o Império
Otomano, tendo havido ucranianos que ocuparam altos postos da administração
czarista e da Igreja Ortodoxa russa.
Em relação à cidade de Kiev (atual capital da Ucrânia), ela passou para o domínio da Rússia no século XVII. No século XIX, nos anos 40, o historiador Mykola Kostomarov fundou a irmandade de São Cirilo e São Metódio, propganado a ideia de um federação do povo eslavo livre, com destaque para os ucranianos que ficariam separados da nação russa. O movimento foi reprimido pelo poder russo.
A Ucrânia gradualmente perdia autonomia
no século XIX e houve uma grande migração de russos e mudanças administrativas
promovidas pelo Império Russo. Kiev foi dominada pela população
russa no início do século XX, mas a população mais pobre manteve muitos
costumes ucranianos. Também nobres, militares e comerciantes de origem
ucraniana fizeram ações de preservação da cultura nativa de Kiev, que desde o
fim do século XIX tornou-se um importante centro comercial do Império Russo e
alguns anos depois também um destacado centro industrial, sendo que a primeira
linha de bonde elétrico do Império Russo foi implantada na cidade. Após
a revolução bolchevique, no século XX, foi consolidada a república soviética da
Ucrânia. Nos anos de 1920 houve uma considerável migração da população de
língua ucraniana do campo para Kiev, que foi muito industrializada durante a
fase de industrialização soviética dessa época. A Ucrânia foi muito afetada
pela grande fome do início dos anos 30 e a maioria dos intelectuais ucranianos
foi morta na repressão política de Stalin.
Durante a Segunda Guerra Mundial houve
muitas mortes e destruição na Ucrânia, inclusive terríveis massacres de judeus.
Nos anos de 1980 houve a catástrofe da usina nuclear de Chernobil. E no início
dos anos 90 houve o colapso da União Soviética. Em
1991, com o fim da União Soviética (URSS), a Ucrânia tornou-se independente.
Possui 24 oblasts (províncias). Destacou-se em 2011 como o
terceiro maior exportador de grãos do mundo. Possui importantes indústrias
aeronáuticas e de equipamentos. Politicamente tem um sistema semipresidencial.
Seu exército é o terceiro maior da Europa, o francês é o segundo e o russo é o
maior de todos. A composição da população é na maioria de ucranianos étnicos
(cerca de 77%), vindo em seguida russos (17%) e minorias de bielorrussos e
romenos. A língua oficial é o ucraniano e a outra língua muito falada é o
russo. O alfabeto destas duas línguas é o cirílico. Na religião predomina o
cristianismo ortodoxo oriental.
Mais recentemente, em 2013, houve um
movimento político na Ucrânia em direção à União Europeia. A partir de 2014
passaram a haver conflitos envolvendo a Rússia e a Ucrânia. Nesse ano, a Rússia
incorporou o território da Crimeia e a partir de então houve enfrentamentos
militares na região de fronteira entre Rússia e Ucrânia, com a incorporação
parcial do extremo leste ucraniano com o apoio de milícias locais pró-Rússia,
com um saldo de milhares de mortos. E, atualmente, há mais de 100
mil soldados na fronteira com a Ucrânia. No momento, o inverno está atrapalhando
o transporte militar e ainda não foram instalados hospitais de campanha em
número suficiente. Esses são elementos que podem estar atrasando um grande
ataque, mas não impedem de começar ao menos parcialmente.
O exército ucraniano
tem forças consideráveis e está bem armado com equipamentos ocidentais. Segundo
alguns especialistas, uma resistência maior dos ucranianos poderia começar a
esgotar os esforços militares russos, embora com grandes perdas de ambos os
lados. O governo dos Estados Unidos está cogitando fazer retaliações no caso de
um ataque russo, atrapalhando o fornecimento de gás russo à Europa (o que
poderá causar dificuldades a países europeus) e fazendo bloqueios que afetem o
sistema financeiro russo (o que pode levar a uma aproximação maior da Rússia
com a China, para compensar as perdas russas).
A Ucrânia tem acusado Moscou de estar
coordenando ataques cibernéticos e disseminando fake news. A nível
mundial, um ataque russo pode afetar o preço do barril de petróleo. Este
aumento poderá atingir também o Brasil. Outras consequências estão ligadas a
uma possível crise migratória e à questão energética europeia, afetando, por
exemplo, a economia alemã. Devido a esta questão relativa ao fornecimento de
gás russo, não há um consenso de nações europeias sobre a reação a um ataque da
Rússia. Os Estados Unidos já estão colocando de prontidão alguns milhares de
soldados que poderão ser deslocados para o leste europeu e também navios estão
sendo mandados para a região do Mar Negro.
A seguir análises de especialistas:
Segundo o professor aposentado de
História Contemporânea, Antônio Barbosa, da Universidade de Brasília (UnB): “É
uma questão basicamente de geopolítica, mexendo com o tabuleiro de xadrez da
política internacional. É como se fosse um triângulo com três vértices: de um
lado a Rússia, do outro lado os Estados Unidos e o terceiro vértice seria a
Europa propriamente dita. E, no meio de toda esta confusão, está a Ucrânia”. E
ainda disse: “Putin está conseguindo mostrar que, apesar de a União Soviética
não existir mais, de ter perdido o controle sobre os países do Leste Europeu, a
Rússia continua sendo uma grande potência, inclusive mantendo intacto o seu
arsenal nuclear”.
Para o professor Toal, da Universidade
de Virgínia Tech (EUA): “A Rússia está seguindo essas políticas no momento
porque percebe que um país que está perto de sua fronteira está se tornando uma
plataforma para uma aliança militar ameaçadora. Portanto, tem a ver com
possibilidade de a Ucrânia se tornar membro da OTAN e assim passar a armazenar
mísseis e tropas dessa aliança”. Esse professor também diz: “A Rússia não vê a
Ucrânia como apenas um país. A visão dominante do nacionalismo russo é que a
Ucrânia é uma nação eslava irmã e, além disso, o coração da nação russa. Essa é
uma ideologia muito poderosa, que faz da Ucrânia um elemento central da
identidade russa”. Diz também: “Portanto, há sentimentos muito fortes quando a
Ucrânia como nação se define em oposição à Rússia. Isso causa muita raiva e
frustração na Rússia, que se sente traída por um irmão. E isso tem a ver com a
incapacidade da visão dominante entre os russos de reconhecer a identidade
nacional ucraniana como algo separado da Rússia”.
Toal discorda de que se veja a crise na
Ucrânia do ponto de vista emocional: “Muitos analistas fazem isso e penso que é
uma abordagem perigosa. Quando olhamos para os argumentos emotivos da crise na
Ucrânia, tendemos a reduzi-los a ideias como a de que Putin está chateado e
zangado. Nós o transformamos em uma espécie de louco, que toma decisões
irracionais. Isso é um erro. Essas emoções são genuínas e fazem parteda cultura
geopolítica da Rússia, então qualquer líder daquele país teria de lidar com
elas e decidir se afirma-las ou deixa-las de lado.” E destaca: “Acredito que as
políticas de Putin tem muito a ver com sua personalidade e sua história como
ex-agente da KGB (agência de inteligência da URSS) que foi treinado na era
soviética e que tem um anseio particular por um Estado forte. Todas essas
coisas são extremamente importantes. Um líder da geração mais jovem
provavelmente abordaria essas questões de maneira diferente, mas essas emoções
são genuínas e não podemos dizer que são apenas elementos da personalidade de
Putin”.
Para George Friedman, da Geopolitical
Futures: “A Ucrânia é a fronteira ocidental da Rússia. Quando os russos foram
atacados pelo oeste durante a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra
Mundial, foi o território da Ucrânia que os salvou. Inimigos tinham de
percorrer mais de 1,6 mil quilômetros para chegar à Moscou. Se a Ucrânia cair
nas mãos da OTAN, Moscou estaria a apenas 640 km deles. Foi a Ucrânia que salvou
os russos de Napoleão. Portanto, se trata de uma zona de segurança que eles
querem manter”. Para este comentarista político, os líderes russos fazem menção
à Doutrina Monroe do século XIX (“A América para os americanos”), usada contra
as intervenções européias na América, pois por esta ótica territórios como a
Ucrânia fazem parte de uma zona de influência histórica russa e onde não deve
haver interferências externas. Para esse comentarista: “(...)Do ponto de vista
da segurança nacional da Ucrânia, eles buscam aliados contra um Estado que veem
como muito perigoso e que já lhes tomou parte de seus territórios reconhecidos
internacionalmente”. E sobre a preocupação geopolítica da Rússia diz ele: “Sim,
os dois países compartilham uma historia comum. Historicamente, a Ucrânia foi
dominada e oprimida pelos russos. Durante o período soviético, eles sofreram
uma grande fome, em que milhões de pessoas morreram, porque a Rússia
queria exportar os grãos que produziam. A grande unidade entre o povo russo e ucraniano
é um absurdo”
Outro especialista, o professor
Maurício Santoro, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj),disse: a causa última de todos esses conflitos
envolvendo a Ucrânia é definir qual é a esfera de influência da Rússia, dos
Estados Unidos e da União Europeia no Leste da Europa”. Esse estudioso destaca
que depois do fim da URSS houve uma expansão da influência ocidental nos países
que antes eram aliados da URSS e até mesmo em ex-repúblicas soviéticas. Disse a
respeito: “Elas passaram a fazer parte da União Europeia, da Otan [Organização
do Tratado do Atlântico Norte], ou dos dois ao mesmo tempo.” Sobre a expansão
da OTAN e a sensação de estar sob ameaça por parte da Rússia ele disse: Uma
ameaça para sua própria integridade territorial” e especificamente no caso da
Ucrânia afirmou: “Basicamente a metade leste do país tem uma história muito
ligada à Rússia e uma presença muito grande de pessoas que falam russo, com
origem étnica russa, quer dizer os laços históricos ali realmente são todos
voltados para a Rússia”. Porém fez observações sobre diferenças entre a parte
leste e a parte oeste da Ucrânia. Sobre a parte leste: “Basicamente a metade
leste do país tem uma história muito ligada à Rússia e uma presença muito
grande de pessoas que falam russo, com origem étnica russa, quer dizer os laços
históricos ali realmente são todos voltados para a Rússia (...). Sobre a parte
oeste:..”É um território que, em vários momentos da história, fez parte do
império Habsburgo ou fez parte da Polônia. É outra cultura, outra tradição
histórica, então a Ucrânia é, ela mesma, muito dividida com relação a para onde
ele vai.”
Sobre a questão
energética que envolve a Rússia e países da Europa, o professor Barbosa fez o
seguinte comentário: “Na eventualidade de um conflito armado naquela região, a
Rússia poderia suspender o fornecimento deste gás, que é vital. Um dos países
que mais sofreria com isso é a Alemanha, o que talvez explique o fato de que,
ao contrário do Reino Unido e ao contrário da França, a Alemanha, até o
presente momento, não abriu a boca para contestar Putin”.
Diante de todo o cenário apresentado e
considerando as análises mostradas acima, uma guerra envolvendo Rússia e
Ucrânia terá graves efeitos não só para os dois países. Também outros países
serão afetados e poderá haver consequências na economia mundial. É preciso que
todas as ações diplomáticas sejam tentadas para evitar um confronto bélico e se
estabelecer a paz. Penso que deve ser encontrar um meio de assinar um acordo
político, possivelmente com a não adesão da Ucrânia à OTAN, mas com a garantia
territorial da Ucrânia, que deveria ser restituída dos seus territórios
incorporados à Rússia recentemente, com a garantia de todos os direitos
políticos e culturais das populações etnicamente russas na Ucrânia e
possibilitando a continuação da base militar russa em Sebastopol, na Crimeia,
que é considerada altamente estratégica pela Rússia. Quanto à entrada
definitiva na União Europeia, considero ser direito da Ucrânia decidir se vai
fazer parte da mesma. Também penso que poderiam ser mantidos laços fortes
culturais com a Rússia, assim como se estabelecendo relações políticas e
econômicas com este país, desde que preservando totalmente a independência da
Ucrânia.
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Márcio José Matos Rodrigues-Professor
de História.
Figura:
https://www.google.com/search?q=imagem+do+mapa+da+ucrania&tbm=isch&ved=2ahUKEwi9zv21oOL1AhWVupUCHTJHAcQQ2-cCegQIABAA&oq=imagem+do+mapa+da+ucrania&gs_lcp=C
Nesse momento de crise sanitária global é muito importante à diplomacia para não aumentar a fome nós países pobres.
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