sábado, 17 de setembro de 2022

Artigo: O Setembro Amarelo, a Semana do Trânsito e os casos de suicídios no trânsito.

 



 No mês de setembro há no Brasil a campanha do Setembro Amarelo, na qual se debate sobre o suicídio, com destaque para a prevenção. E também a Semana do Trânsito. Neste artigo vou abordar um pouco sobre cada um desses eventos e fazer uma relação com um assunto que está relacionado às duas: “O suicídio de trânsito”.

A campanha Setembro Amarelo é realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM). Trata-se de uma ação que visa a conscientização sobre suicídio no Brasil. Do total de casos de suicídios, mais de 96% deles estão relacionados a transtornos mentais, sendo em primeiro lugar a depressão, em segundo o transtorno bipolar e em terceiro o abuso de substâncias. A campanha ocorre durante o mês de setembro objetivando uma prevenção e a redução dos números de suicídios. As pessoas que querem cometer o suicídio pensam rigidamente pela distorção que o sofrimento emocional impõe. Quanto à campanha, são realizadas atividades em empresas, escolas, órgão públicos etc. Foram registrados em 2019 mais de 700 mil suicídios em todo o mundo, sem contar com os episódios subnotificados. Se forem somados esses também, os casos podem até mesmo ter superado um milhão e no Brasil calcula-se que nesse ano foram 14 mil casos. O dia 10 de setembro é oficialmente o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Em 2022 o tema é: “A vida é a melhor escolha!”

A Semana do Trânsito acontece anualmente de 18 a 25 de setembro. Nesta semana está inserido o Dia Nacional do Trânsito no Brasil (dia 25 de setembro). Esta data foi escolhida porque foi no dia 23 de setembro de 1997 que foi aprovada a Lei 9503/1997, a lei do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Com essa lei pretendeu-se estabelecer as diretrizes para a gestão de trânsito no país. Na Semana de Trânsito há atividades educativas no Brasil, buscando a conscientização dos participantes do trânsito e o debate em relação a este sistema, destacando-se a importância de uma humanização no trânsito, com menos conflitos e acidentes. O tema das ações de trânsito em 2022 é: “Juntos Salvamos Vidas, ressaltando-se a responsabilidade de todos os participantes do trânsito na preservação da vida.

Pode-se observar que a palavra vida presente nos temas de ambos os eventos. Então, resolvi fazer a ligação com a questão dos suicidas no trânsito, destacando a importância de, no trânsito, evitar que pessoas queiram tirar suas vidas, usando, por exemplo, o carro como um instrumento para se matarem.

Vou citar alguns trechos de autores que escreveram sobre o suicídio de trânsito.

O advogado Thomaz Thompson Flores Neto destaca o comportamento errado de parte significativa dos pedestres em casos de atropelamentos. Ele diz em seu artigo O suicídio de trânsito - direto e indireto:

“Suicídio de trânsito é figura não-conhecida do direito pátrio, mas deveria. O suicídio, mesmo o comum, ainda que sob o aspecto formal configure indiferente penal, tem crucial relevância em sua perfeita identificação.

Sabe-se que o suicídio e a tentativa de suicídio não são tipificados na legislação penal. O primeiro por razão óbvia, a segunda por política criminal, dado o risco de estimular novas tentativas.

Conquanto não configure crime, é inquestionável tratar-se de ação ilícita, vez que afrontosa a um bem supremo: a vida. O próprio Código Penal (clique aqui), implicitamente, assim a considera (art. 146, § 3º, II).

O suicídio (matar a si mesmo), assim como o homicídio (matar alguém), pode se dar de forma direta ou indireta.

Na direta, o agente tem a intenção de matar. Na indireta, embora não tenha intenção de matar, assume o risco do previsível resultado morte, com o qual anui (dolo eventual); ou, não anui, presumindo que não irá ocorrer (culpa consciente); ou mata, simplesmente, por imperícia, imprudência ou negligência (culpa inconsciente).

Pois bem, no suicídio de trânsito assim se dá. O agente pode, por exemplo, deliberadamente se jogar na frente de um veículo em movimento, visando dar cabo à própria vida (suicídio de trânsito direto), como cruzar movimentada avenida fora da faixa de pedestres, ou, ainda, atravessar o leito de rodovia ao invés de fazê-lo pela segura passarela (suicídio de trânsito indireto com culpa consciente), ou, inopinadamente, cruzar a rua sem a devida atenção (suicídio de trânsito indireto com culpa inconsciente).

O que é importante sublinhar, é que em qualquer dessas hipóteses o condutor do veículo envolvido no evento não é, nem em tese, autor de homicídio de trânsito, previsto no artigo 302 do CBT.O veículo em movimento é mero instrumento do qual serviu-se o suicida (intencional ou não), para matar-se. O condutor é vítima de danos materiais e morais, além de testemunha ocular do suicídio.

Contudo, esse não é o entendimento corrente, tampouco o que ocorre na prática.

Na prática, o desafortunado condutor que se vê envolvido em trágico evento desse jaez - enquanto seguia licitamente pela via pública, observando as normas legais e regulamentares - além de vivenciar o intenso trauma que decorre da involuntária participação na morte violenta de um ser humano, é, em regra, indiciado como autor de homicídio de trânsito, e, logo adiante, denunciado perante a justiça criminal, transformando-se em réu de ação penal, gravosa condição que suporta até o momento em que seja proferida sua absolvição.

Cumpre indagar: é justo? É razoável? Não parece.

Nessas circunstâncias, sublinhe-se, o condutor não dá causa ao evento em que resulta morto o pedestre - que agiu de forma temerária, desatenta, ou até mesmo intencional - é vítima dele. Trafega regularmente, com veículo em perfeito estado, observando a velocidade permitida e demais regras de trânsito, com a atenção e prudência que se espera do homem médio, quando subitamente emerge na frente do veículo o pedestre suicida, que morre (...)”

(https://www.migalhas.com.br/depeso/68464/o-suicidio-do-transito-direto-e-indireto)

Outra autora, a psicóloga clínica, organizacional e de trânsito, Melissa Pereira faz a seguinte análise em seu artigo Kamikazes: Comportamento suicida no trânsito:

“O comportamento humano sempre é a chave para as grandes mudanças de uma sociedade, tanto positivamente como negativamente. O Brasil apresenta grandes problemas sociais que estão em evidência de forma constante. Nesse texto podem-se destacar dois, as mortes no trânsito e o suicídio. Então surge a pergunta: Que relação existe entre o trânsito e o suicídio? 

Suicídio é o ato de um indivíduo, deliberadamente, encurtar a própria vida. Suicídios acometem pessoas em todas as camadas sociais e por diversos motivos, desde depressão, problemas financeiros, amores não correspondidos e inúmeras situações. Esse ato vai contra a natureza do nosso cérebro. Sempre que estamos em situação de risco, medo ou estresse, nosso sistema nervoso ativa um mecanismo muito conhecido dos psicólogos, médicos e fisiologistas: a chamada reação de luta e fuga. Nosso cérebro utiliza esse mecanismo para autopreservação, representando a capacidade de um indivíduo tentar conservar a própria existência ou integridade. É o desejo inato de manter-se vivo, é o instinto básico para preservar a própria vida, ou seja, essa resposta prepara o corpo para responder (lutar ou fugir) a uma ameaça.

Quando falamos em acidente de trânsito, a conclusão é de que a maioria deles é provocada pelo homem por negligência, imprudência e imperícia, como ensina a direção defensiva. Baseado nesse pensamento, o homem coloca-se em situação de risco frequentemente e as estatísticas revelam números que assustam. No ano de 2017, os índices de mortes no trânsito continuaram altos e de acordo com o Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde foram registrados 32.615 óbitos do tipo. Esses números só nos mostram como o elemento principal do trânsito ainda não consegue se integrar a ideia de ser condutor. Esse alto índice de mortos e feridos aponta para um quadro complexo da sociedade atual.

Ao iniciamos nossa busca para a fim de obter a CNH, temos aulas de legislação de trânsito e direção defensiva orientando como minimizar ao máximo os riscos de acidentes de trânsito.  Mas as estatísticas com mortes no transito sempre é alta, comparado a guerras que dizimaram milhares de pessoas. A partir do momento que decidimos conduzir um veículo temos que incorporar ao nosso comportamento a boa conduta e prudência e que o nosso mau hábito no trânsito pode ter consequências irreversíveis para uma sociedade.

Daí em diante, quando conquistamos a CNH, simbolicamente assinamos um contrato com a sociedade, que seremos responsáveis uns pelos outros quando conduzimos no trânsito. Se pararmos para pensar, muitos condutores assumem esse compromisso de responsabilidade com seriedade, enquanto outros adotam um comportamento suicida, assumido situação de riscos conscientes. Esse tipo de comportamento remete a ideia de suicídio, ou melhor dizendo, tentativas de suicídio. Porque essas duas situações, o comportamento de risco no trânsito e o suicídio partem do mesmo princípio, a autodestruição. Podemos batizar esses condutores, como analogia, de “kamikazes no trânsito”. 

Os kamikazes eram uma unidade de ataque especial na Segunda Guerra Mundial. Os pilotos eram treinados por uma semana para fazer esse vôo com ataques suicidas contra navios dos Aliados com o objetivo de destruir o maior número possível de navios de guerra. Eram pilotos jovens que arremessavam seus aviões contra os navios inimigos pois não tinham combustível o suficiente para chegar em uma base segura. O ataque kamikaze era um tema muito polêmico, pois nesse caso o piloto ou a tripulação inteira de um avião atacante morria, assim eliminavam probabilidade de salvamento, uma vez empenhado no mergulho mortal, era impossível sobreviver ao ataque. 

Pegando essa ideia dos pilotos japoneses e trazendo para a atualidade do trânsito, podemos classificar muitos condutores como “kamikazes”, porque inconscientemente apropriam-se de um comportamento inconsequente.  Apesar de toda tecnologia dos veículos, todas as informações que existe em torno do trânsito, todas as campanhas e ações, o veículo que deveria ser usado como necessidade de locomoção ainda é visualizado e utilizado como ostentação e representação de nossa imaturidade competitiva, vendo no outro condutor o inimigo, tornando o veículo quase uma arma de guerra.

Então, porque chamar os condutores de kamikazes? Simples, uma relação que diz respeito ao ato de autodestruição. Podemos destacar que condutores irresponsáveis se tornam suicidas indiretos, por agir diferente da função cerebral de autopreservação, desafiando as normas circulação e de segurança, colocando-se em riscos extremos.

Mas a verdade é que o comportamento no trânsito é um fenômeno bastante complexo e envolve um conjunto de fatores e processos psicológicos. Você pode até não concordar com essa relação entre o comportamento de risco no trânsito e o suicídio, mas no instante em que assumimos atitudes de perigo, colocando em risco a vida, acaba sendo conivente e responsável com as consequências, apresentando um perfil suicida, de autodestruição.”

 

A seguir alguns casos que encontrei na Internet:

“Homem provoca acidente com quatro carros e comete suicídio em seguida

Investigação tentará descobrir se o condutor provocou a colisão propositalmente porque queria se matar

27/02/2018

GZH

Quando policiais chegaram ao local para registrar o acidente, já o encontraram morto, baleado-Reprodução / NBC

Após causar um acidente envolvendo quatro carros e se certificar de que nenhum dos outros envolvidos estava ferido, um homem cometeu suicídio no último domingo (25), em Houston, no Texas. De acordo com testemunhas, o homem, que não teve a identidade divulgada, provocou o acidente ao dirigir na contramão.

Depois do acidente, o homem saiu do carro e foi até os outros motoristas, perguntando se todos estavam bem e se alguém havia se machucado. Após se certificar de que todos estavam bem, o motorista se reaproximou de seu carro, deu uma volta ao redor dele e entrou novamente. Quando policiais chegaram ao local para registrar o acidente, já o encontraram morto, baleado.

O policial Thomas Gilliland, um dos que atendeu a ocorrência, acredita que o suicídio não tenha sido por causa do acidente. A investigação irá tentar descobrir, inclusive, se o homem provocou a colisão propositalmente porque queria se matar.”

A impressão que fica, ao meu ver, é que o homem, no caso apresentado acima, queria a princípio utilizar o automóvel para se matar, o que poderia ter causado a morte ou ferimentos em outros motoristas. A intenção dele não era causar danos físicos em outros condutores. E, logo depois, ele tirou sua vida de outra forma.

 Outro caso a seguir citado em artigo publicado pelos autores Karine Silva Biliu;

Ivânia Vera; Roselma Lucchese;Núbia Inocêncio de Paula;Inaína Lara Fernandes; Graciele Cristina Silva: 

Descrição do comportamento suicida entre caminhoneiros que trafegam a BR 050 entre Minas Gerais-Goiás

Resumo

A ideação suicida é definida como pensamentos de caráter suicida, sem necessariamente com ação efetiva, com maior prevalência que o próprio suicídio fatal. Objetivo: descrever o comportamento suicida entre caminhoneiros que trafegam a BR 050 entre Minas Gerais- Goiás. Material e métodos: o método de pesquisa foi um estudo descritivo de natureza qualitativo, com a população de caminhoneiros que transitam pela BR-050.

Resultados: foram entrevistados 624 caminhoneiros. Os dados sócio demográficos apresentam que a faixa etária predominante na amostra foi 78.8% entre 31 a 59 anos, com natureza qualitativa, com a população de caminhoneiros que transitam pela BR-050, com procedência da região sudeste, de etnia branca, com o ensino fundamental completo e renda igual ou inferior a três salários mínimos. Em relação ao comportamento e ideação suicida, o rastreamento apresentou ideação suicida durante a vida de 7.4%, de ideação suicida no último 2.4% e, tentativa de suicídio apresentou a prevalência de 1.8% do total da amostra.

 Conclusão: A prevalência de ideação suicida e tentativas de suicídio apontadas neste estudo foram menores quando comparado a outras populações, contudo considerando as adversidades das condições de trabalho que cotidianamente convivem com fatores de risco como longas jornadas de trabalho e contato frequente com drogas estimulantes, não se pode ignorar a presença do comportamento suicida nesta profissão.

 Outro artigo publicado que me chamou atenção foi este:

“Uma emoção pode ser a principal causa de acidentes no trânsito; descubra qual é

Acredite ou não, existe uma emoção que causa acidentes em grande proporção, ainda mais do que estar cansado ou distraído.

Um estudo mostrou que estar triste ou depressivo afeta severamente a habilidade de dirigir. O artigo publicado no site The Telegraph explica como estar triste, irritado ou agitado aumenta o risco de um acidente em quase dez vezes.

Pesquisadores norte-americanos da universidade Virginia Tech analisaram muitas das teorias para buscar as causas mais comuns de acidentes.

Surpreendentemente, os estudos indicam que interagir com uma criança pode reduzir o risco de uma batida. Comer e se maquiar também não representam riscos significativos.

Contudo, a fadiga ainda é perigosa para a segurança do trânsito: pode aumentar o risco de acidente em três vezes. Chance maior do que falar ao telefone, por exemplo.

A pesquisa

Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores usaram câmeras de vídeo para monitorar os hábitos de mais de 3.500 pessoas em todos os Estados Unidos.

Durante o período de estudo, houve mais de 900 acidentes em que as pessoas saíram feridas e com danos em seus automóveis.

Os pesquisadores compararam essa informação com dados de acidentes de carro e descobriram, primeiramente, que  mais da metade dos motoristas tinham algum tipo de comportamento arriscado sempre que estavam dirigindo por uma estrada.

Veja mais dados relevantes:

  1. Conduzir triste aumentou o risco de acidente em 9,8 vezes.
  2. Procurar um objeto no carro aumentou o risco de batida em 9 vezes.
  3. Mensagens de texto ou revisar o celular aumentou o risco de acidente em 6 vezes.
  4. Dirigir cansado aumentou o risco para 3 vezes. Enquanto falar com o passageiro apontou risco mínimo e dançar ao volante não teve impacto.

O maior risco de acidente

Como era de se esperar, o consumo de bebidas alcoólicas ou drogas aumentou as chances de acidente em mais de 35 vezes.

Com base nos resultados, os especialistas consideram que mais de 30% dos acidentes podem ser evitados eliminando todas as distrações.

No entanto, é importante não minimizar o impacto de uma emoção ao dirigir e redobrar os cuidados quando  for necessário dirigir quando se está triste, desconfortável ou emocionalmente instável.

(https://www.metroworldnews.com.br/foco/2018/01/08/uma-emocao-pode-ser-principal-causa-de-acidentes-no-transito-descubra-qual-e.html)

Bem, encerrando este artigo, em que procurei fazer uma relação entre a Semana do Trânsito e o Setembro Amarelo, destacando a questão dos comportamentos suicidas no trânsito e a questão emocional como influência importante. De modo algum considero que pude contemplar toda a complexidade deste universo. Procurei principalmente instigar a reflexão. Destaco que a sociedade (em especial as autoridades), precisa atentar para as questões psicossociais envolvendo as ocorrências de suicídios, sejam no trânsito ou fora deste, e que a vida humana em geral deve ser valorizada, assim como os fatores ligados ao trânsito no Brasil, ressaltando as questões comportamentais dos participantes do sistema, devem ser alvo de mais atenção, fazendo-se mais investimentos em educação, infraestrutura, melhores veículos, mais fiscalização, melhorias no transporte público e mais respeito às categorias mais vulneráveis.

Deixo aqui, finalizando meu artigo, trechos de uma entrevista com Reinier Rozestraten, Doutor em Psicologia, especialista em Psicologia do Trânsito, e meu professor e orientador em dois cursos de pós graduação:

"O trânsito é um problema social. Em cada cruzamento, constatamos que os pedestres, os carros, os ônibus, as bicicletas etc. vão e vêm de diferentes direções. Em princípio, cada um deseja passar por esse cruzamento permanecendo ileso e deixando o outro passar também ileso. Na prática, a situação é mais complexa do que parece à primeira vista. O motorista quer fluidez do tráfego de veículos, o pedestre precisa de menor fluidez para que possa atravessar a rua e, por outro lado, o comerciante deseja que os fregueses possam estacionar em frente a sua loja. Portanto, os interesses das pessoas que participam do trânsito não são os mesmos, e entram necessariamente em conflito.

E mesmo os interesses das pessoas são variáveis conforme a situação. Por exemplo, uma pessoa quando é motorista vê o pedestre como estorvo no seu caminho, mas quando essa mesma pessoa torna-se pedestre vê o carro atrapalhando o seu caminho. Há uma ambivalência ou contradição no seu julgamento da situação, dependendo da posição que ele está assumindo. É um certo egoísmo no sentido de querer sempre em todas as situações a garantia de todos os direitos e o mínimo possível de deveres a serem cumpridos. Essa atitude interfere no trânsito para que não se tenha uma consciência de que o trânsito é um jogo social, envolvendo motoristas e pedestres, conforme regras definidas. A maioria imagina que pode fazer na hora as regras conforme as suas conveniências porque ele é mais importante do que as regras (...)”

“...Na nossa realidade, algumas pessoas têm mais direitos do que os outros. O filho do prefeito, o deputado, a mulher do governador e muitas outras pessoas acham que não precisam respeitar as regras porque são exceções às regras. Assim, reforça-se o desrespeito às regras, que depois se generaliza: se essas pessoas podem, por que eu, cidadão comum, também não posso? Em outros países, o processo é totalmente inverso ao nosso. Lembro que na Holanda, um policial multou o príncipe Bernard e por isso foi condecorado. Quem vai ser condecorado no Brasil por multar o Presidente da República?

No Brasil, quem é o mais forte tem mais direitos, mas não deveria ter. Isso porque não há punição e nem fiscalização. Você pode atropelar e até matar alguém com o carro, e fica impune. No julgamento, são aceitos diversos argumentos de defesa: você não quis matar propositalmente, é réu primário etc.

Se houvesse uma fiscalização mais séria no trânsito, diminuiria sem dúvida o índice de acidentes. No Japão, eles conseguiram procedendo dessa maneira: multas altas e fiscalização para todo lado. Se você tem que pagar tanto porque o seu carro está mal estacionado, dentro de uma semana ninguém mais vai estacionar mal. Aí acaba ficando caro e o pessoal vai começar a pensar antes de levar multa.

É importante assegurar que o brasileiro coloque na cabeça que as leis de trânsito não são imposições autoritárias. Elas possuem uma vigência internacional e foram imaginadas para dar segurança a todos aqueles que participam do trânsito.”

“...Os motoristas se impõem no trânsito pela força bruta, respaldados pela impunidade. Tanto é que a maior porcentagem de acidentes de trânsito é de atropelamento de pedestres. São 50 mil pessoas que morrem no trânsito todo ano. A estatística oficial è de 23 mil, mas refere-se somente àqueles que morrem no momento exato do acidente. Quem morre sendo transportado para o hospital, ou morre dois ou três meses após o acidente, não entra na estatística oficial. A mesma coisa acontece com todos os acidentes que não constam nos Boletins de Ocorrência, pois a polícia não foi chamada e tudo se resolveu informalmente entre os envolvidos(...)”

“...O Boletim de Ocorrência não fornece informações suficientes sobre os acidentes. É preciso melhorar o Boletim de Ocorrência e dar um treinamento aos policiais para obterem mais dados, deixando de simplesmente acumular dados e números sem refletir a realidade. Deveria ser feita uma estatística que signifique alguma coisa de maneira muito mais diferenciada do que acontece hoje (...)”

“...Constatamos que o acidente ainda é visto de modo muito genérico no Brasil. Quando há morte de duas pessoas ou quando um carro bate o pára-choque num barranco, ambos os casos são considerados acidentes, mas são completamente diferentes entre si. Por isso, é preciso passar a fazer uma descrição mais minuciosa dos acidentes e dos envolvidos neles, abrangendo classe social, faixa etária, local etc. É um estudo de Psicologia Social que não foi feito ainda no Brasil (...)”

“...Em termos de epidemiologia, o número de mortes de acidentes no trânsito é menor na realidade do que de mortes por doenças cardiovasculares. Entretanto, mais de 30% morrem nos acidentes de trânsito entre 18 e 30 anos, enquanto a maioria das vítimas de doenças cardiovasculares morre com 40 ou 50 anos normalmente. Mesmo que as vítimas de doenças cardiovasculares vivam até 70 anos, o número de anos de vida útil destes é bem menor em relação aos acidentados no trânsito que teriam mais 40 ou 50 anos de vida pela frente. São pessoas jovens em quem não somente os pais, como também a sociedade, investiram durante muito tempo. E, exatamente quando chegam à idade produtiva, perdem a chance de poder dar um retorno à sociedade por causa de um acidente de trânsito que pode ter acontecido por uma estupidez, distração ou ignorância(...)”

“...Precisamos abandonar a ideia de que o trânsito é um assunto só do DETRAN, do CONTRAN, do DNER. Os órgãos públicos colocam as placas de sinalização, marcam as ruas etc., mas quem faz o trânsito somos nós. Eles podem fazer o Código Nacional de Trânsito, mas quem obedece ou desobedece somos nós. Todos nós participamos do trânsito e nessa medida temos uma certa parcela de responsabilidade nisso.

Assim, o trânsito passa a ser visto como um bem social que pertence a todos. Todos têm direito ao trânsito, que não pertence somente a um ou a outro. Se alguém tem direito, também tem deveres em relação aos outros, e vice-versa. Teria que haver uma mudança de consciência de que o trânsito é de todos e para todos. Aí ocorreria uma tentativa de todo mundo permanecer vivo, alcançar seu destino e ninguém se ferir ou morrer. Seria um benefício para todos na sociedade e, nesse sentido, o trânsito deveria ser um exercício de convivência pacífica."

Revista Psicologia e Profissão (1986)

 

Márcio José Matos Rodrigues-Psicólogo e Professor de História

 

 


Figura:

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