No mês de setembro há no Brasil a campanha do Setembro Amarelo, na qual se debate sobre o suicídio, com destaque para a prevenção. E também a Semana do Trânsito. Neste artigo vou abordar um pouco sobre cada um desses eventos e fazer uma relação com um assunto que está relacionado às duas: “O suicídio de trânsito”.
A campanha Setembro Amarelo é
realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com o
Conselho Federal de Medicina (CFM). Trata-se de uma ação que visa a
conscientização sobre suicídio no Brasil. Do total de casos de suicídios, mais
de 96% deles estão relacionados a transtornos mentais, sendo em primeiro lugar
a depressão, em segundo o transtorno bipolar e em terceiro o abuso de
substâncias. A campanha ocorre durante o mês de setembro objetivando uma
prevenção e a redução dos números de suicídios. As pessoas que querem cometer o
suicídio pensam rigidamente pela distorção que o sofrimento emocional impõe.
Quanto à campanha, são realizadas atividades em empresas, escolas, órgão
públicos etc. Foram registrados em 2019 mais de 700 mil suicídios em todo o
mundo, sem contar com os episódios subnotificados. Se forem somados esses
também, os casos podem até mesmo ter superado um milhão e no Brasil calcula-se
que nesse ano foram 14 mil casos. O dia 10 de setembro é oficialmente o Dia
Mundial de Prevenção ao Suicídio. Em 2022 o tema é: “A vida é a
melhor escolha!”
A Semana do Trânsito acontece anualmente
de 18 a 25 de setembro. Nesta semana está inserido o Dia Nacional do Trânsito
no Brasil (dia 25 de setembro). Esta data foi escolhida porque foi no dia 23 de
setembro de 1997 que foi aprovada a Lei 9503/1997, a lei do Código de Trânsito
Brasileiro (CTB). Com essa lei pretendeu-se estabelecer as diretrizes para a
gestão de trânsito no país. Na Semana de Trânsito há atividades educativas no
Brasil, buscando a conscientização dos participantes do trânsito e o debate em
relação a este sistema, destacando-se a importância de uma humanização no
trânsito, com menos conflitos e acidentes. O tema das ações de trânsito em 2022
é: “Juntos Salvamos Vidas”, ressaltando-se a
responsabilidade de todos os participantes do trânsito na preservação da vida.
Pode-se observar que a palavra vida presente
nos temas de ambos os eventos. Então, resolvi fazer a ligação com a questão dos
suicidas no trânsito, destacando a importância de, no trânsito, evitar que
pessoas queiram tirar suas vidas, usando, por exemplo, o carro como um instrumento
para se matarem.
Vou citar alguns trechos de autores que
escreveram sobre o suicídio de trânsito.
O advogado Thomaz Thompson Flores
Neto destaca o comportamento errado de parte significativa dos pedestres
em casos de atropelamentos. Ele diz em seu artigo O suicídio de
trânsito - direto e indireto:
“Suicídio de trânsito é figura
não-conhecida do direito pátrio, mas deveria. O suicídio, mesmo o comum, ainda
que sob o aspecto formal configure indiferente penal, tem crucial relevância em
sua perfeita identificação.
Sabe-se que o suicídio e a tentativa de
suicídio não são tipificados na legislação penal. O primeiro por razão óbvia, a
segunda por política criminal, dado o risco de estimular novas tentativas.
Conquanto não configure crime, é
inquestionável tratar-se de ação ilícita, vez que afrontosa a um bem supremo: a
vida. O próprio Código Penal (clique aqui), implicitamente, assim a considera
(art. 146, § 3º, II).
O suicídio (matar a si mesmo), assim
como o homicídio (matar alguém), pode se dar de forma direta ou indireta.
Na direta, o agente tem a intenção de
matar. Na indireta, embora não tenha intenção de matar, assume o risco do
previsível resultado morte, com o qual anui (dolo eventual); ou, não anui,
presumindo que não irá ocorrer (culpa consciente); ou mata, simplesmente, por
imperícia, imprudência ou negligência (culpa inconsciente).
Pois bem, no suicídio de trânsito assim
se dá. O agente pode, por exemplo, deliberadamente se jogar na frente de um
veículo em movimento, visando dar cabo à própria vida (suicídio de trânsito
direto), como cruzar movimentada avenida fora da faixa de pedestres, ou, ainda,
atravessar o leito de rodovia ao invés de fazê-lo pela segura passarela
(suicídio de trânsito indireto com culpa consciente), ou, inopinadamente,
cruzar a rua sem a devida atenção (suicídio de trânsito indireto com culpa
inconsciente).
O que é importante sublinhar, é que em
qualquer dessas hipóteses o condutor do veículo envolvido no evento não é, nem
em tese, autor de homicídio de trânsito, previsto no artigo 302 do CBT.O
veículo em movimento é mero instrumento do qual serviu-se o suicida
(intencional ou não), para matar-se. O condutor é vítima de danos materiais e
morais, além de testemunha ocular do suicídio.
Contudo, esse não é o entendimento
corrente, tampouco o que ocorre na prática.
Na prática, o desafortunado condutor
que se vê envolvido em trágico evento desse jaez - enquanto seguia licitamente
pela via pública, observando as normas legais e regulamentares - além de
vivenciar o intenso trauma que decorre da involuntária participação na morte
violenta de um ser humano, é, em regra, indiciado como autor de homicídio de
trânsito, e, logo adiante, denunciado perante a justiça criminal,
transformando-se em réu de ação penal, gravosa condição que suporta até o
momento em que seja proferida sua absolvição.
Cumpre indagar: é justo? É razoável?
Não parece.
Nessas circunstâncias, sublinhe-se, o
condutor não dá causa ao evento em que resulta morto o pedestre - que agiu de
forma temerária, desatenta, ou até mesmo intencional - é vítima dele. Trafega
regularmente, com veículo em perfeito estado, observando a velocidade permitida
e demais regras de trânsito, com a atenção e prudência que se espera do homem
médio, quando subitamente emerge na frente do veículo o pedestre suicida, que
morre (...)”
(https://www.migalhas.com.br/depeso/68464/o-suicidio-do-transito-direto-e-indireto)
Outra autora, a psicóloga clínica,
organizacional e de trânsito, Melissa Pereira faz a seguinte análise em seu
artigo Kamikazes: Comportamento suicida no trânsito:
“O comportamento humano sempre é a
chave para as grandes mudanças de uma sociedade, tanto positivamente como
negativamente. O Brasil apresenta grandes problemas sociais que estão em
evidência de forma constante. Nesse texto podem-se destacar dois, as mortes no
trânsito e o suicídio. Então surge a pergunta: Que relação existe entre o
trânsito e o suicídio?
Suicídio é o ato de um indivíduo,
deliberadamente, encurtar a própria vida. Suicídios acometem pessoas em todas
as camadas sociais e por diversos motivos, desde depressão, problemas
financeiros, amores não correspondidos e inúmeras situações. Esse ato vai
contra a natureza do nosso cérebro. Sempre que estamos em situação de risco,
medo ou estresse, nosso sistema nervoso ativa um mecanismo muito conhecido dos
psicólogos, médicos e fisiologistas: a chamada reação de luta e fuga. Nosso
cérebro utiliza esse mecanismo para autopreservação, representando a capacidade
de um indivíduo tentar conservar a própria existência ou integridade. É o
desejo inato de manter-se vivo, é o instinto básico para preservar a própria
vida, ou seja, essa resposta prepara o corpo para responder (lutar ou fugir) a
uma ameaça.
Quando falamos em acidente de trânsito,
a conclusão é de que a maioria deles é provocada pelo homem por negligência,
imprudência e imperícia, como ensina a direção defensiva. Baseado nesse
pensamento, o homem coloca-se em situação de risco frequentemente e as
estatísticas revelam números que assustam. No ano de 2017, os índices de mortes
no trânsito continuaram altos e de acordo com o Sistema de Informações de
Mortalidade do Ministério da Saúde foram registrados 32.615 óbitos do tipo.
Esses números só nos mostram como o elemento principal do trânsito ainda não
consegue se integrar a ideia de ser condutor. Esse alto índice de mortos e
feridos aponta para um quadro complexo da sociedade atual.
Ao iniciamos nossa busca para a fim de
obter a CNH, temos aulas de legislação de trânsito e direção defensiva
orientando como minimizar ao máximo os riscos de acidentes de trânsito.
Mas as estatísticas com mortes no transito sempre é alta, comparado a guerras
que dizimaram milhares de pessoas. A partir do momento que decidimos conduzir
um veículo temos que incorporar ao nosso comportamento a boa conduta e
prudência e que o nosso mau hábito no trânsito pode ter consequências
irreversíveis para uma sociedade.
Daí em diante, quando conquistamos a
CNH, simbolicamente assinamos um contrato com a sociedade, que seremos
responsáveis uns pelos outros quando conduzimos no trânsito. Se pararmos para
pensar, muitos condutores assumem esse compromisso de responsabilidade com
seriedade, enquanto outros adotam um comportamento suicida, assumido situação
de riscos conscientes. Esse tipo de comportamento remete a ideia de suicídio,
ou melhor dizendo, tentativas de suicídio. Porque essas duas situações, o
comportamento de risco no trânsito e o suicídio partem do mesmo princípio, a
autodestruição. Podemos batizar esses condutores, como analogia, de “kamikazes
no trânsito”.
Os kamikazes eram uma unidade de ataque
especial na Segunda Guerra Mundial. Os pilotos eram treinados por uma semana
para fazer esse vôo com ataques suicidas contra navios dos Aliados com o
objetivo de destruir o maior número possível de navios de guerra. Eram pilotos
jovens que arremessavam seus aviões contra os navios inimigos pois não tinham
combustível o suficiente para chegar em uma base segura. O ataque kamikaze era
um tema muito polêmico, pois nesse caso o piloto ou a tripulação inteira de um
avião atacante morria, assim eliminavam probabilidade de salvamento, uma vez
empenhado no mergulho mortal, era impossível sobreviver ao ataque.
Pegando essa ideia dos pilotos
japoneses e trazendo para a atualidade do trânsito, podemos classificar muitos
condutores como “kamikazes”, porque inconscientemente apropriam-se de um
comportamento inconsequente. Apesar de toda tecnologia dos veículos,
todas as informações que existe em torno do trânsito, todas as campanhas e
ações, o veículo que deveria ser usado como necessidade de locomoção ainda é
visualizado e utilizado como ostentação e representação de nossa imaturidade
competitiva, vendo no outro condutor o inimigo, tornando o veículo quase uma
arma de guerra.
Então, porque chamar os condutores de
kamikazes? Simples, uma relação que diz respeito ao ato de autodestruição.
Podemos destacar que condutores irresponsáveis se tornam suicidas indiretos,
por agir diferente da função cerebral de autopreservação, desafiando as normas
circulação e de segurança, colocando-se em riscos extremos.
Mas a verdade é que o comportamento no
trânsito é um fenômeno bastante complexo e envolve um conjunto de fatores e
processos psicológicos. Você pode até não concordar com essa relação entre o
comportamento de risco no trânsito e o suicídio, mas no instante em que assumimos
atitudes de perigo, colocando em risco a vida, acaba sendo conivente e
responsável com as consequências, apresentando um perfil suicida, de
autodestruição.”
A seguir alguns casos que encontrei na
Internet:
“Homem
provoca acidente com quatro carros e comete suicídio em seguida
Investigação tentará
descobrir se o condutor provocou a colisão propositalmente porque queria se
matar
27/02/2018
GZH
Quando policiais chegaram ao local para
registrar o acidente, já o encontraram morto, baleado-Reprodução / NBC
Após causar um acidente envolvendo
quatro carros e se certificar de que nenhum dos outros envolvidos estava
ferido, um homem cometeu suicídio no último domingo (25), em Houston, no Texas.
De acordo com testemunhas, o homem, que não teve a identidade divulgada,
provocou o acidente ao dirigir na contramão.
Depois do acidente, o homem saiu do
carro e foi até os outros motoristas, perguntando se todos estavam bem e se
alguém havia se machucado. Após se certificar de que todos estavam bem, o
motorista se reaproximou de seu carro, deu uma volta ao redor dele e entrou
novamente. Quando policiais chegaram ao local para registrar o acidente, já o
encontraram morto, baleado.
O policial Thomas Gilliland, um dos que
atendeu a ocorrência, acredita que o suicídio não tenha sido por causa do
acidente. A investigação irá tentar descobrir, inclusive, se o homem provocou a
colisão propositalmente porque queria se matar.”
A impressão que fica, ao meu ver, é que
o homem, no caso apresentado acima, queria a princípio utilizar o automóvel
para se matar, o que poderia ter causado a morte ou ferimentos em outros
motoristas. A intenção dele não era causar danos físicos em outros condutores.
E, logo depois, ele tirou sua vida de outra forma.
Outro caso a seguir citado em
artigo publicado pelos autores Karine Silva Biliu;
Ivânia Vera; Roselma
Lucchese;Núbia Inocêncio de Paula;Inaína Lara Fernandes; Graciele Cristina
Silva:
Descrição do
comportamento suicida entre caminhoneiros que trafegam a BR 050 entre Minas
Gerais-Goiás
Resumo
A ideação suicida é definida como
pensamentos de caráter suicida, sem necessariamente com ação efetiva, com maior
prevalência que o próprio suicídio fatal. Objetivo: descrever o comportamento
suicida entre caminhoneiros que trafegam a BR 050 entre Minas Gerais-
Goiás. Material e métodos: o método de pesquisa foi um estudo descritivo de
natureza qualitativo, com a população de caminhoneiros que transitam pela
BR-050.
Resultados: foram entrevistados
624 caminhoneiros. Os dados sócio demográficos apresentam que a faixa etária
predominante na amostra foi 78.8% entre 31 a 59 anos, com natureza qualitativa,
com a população de caminhoneiros que transitam pela BR-050, com procedência da
região sudeste, de etnia branca, com o ensino fundamental completo e renda
igual ou inferior a três salários mínimos. Em relação ao comportamento e
ideação suicida, o rastreamento apresentou ideação suicida durante a vida de
7.4%, de ideação suicida no último 2.4% e, tentativa de suicídio
apresentou a prevalência de 1.8% do total da amostra.
Conclusão: A prevalência
de ideação suicida e tentativas de suicídio apontadas neste estudo foram menores
quando comparado a outras populações, contudo considerando as adversidades das
condições de trabalho que cotidianamente convivem com fatores de risco como
longas jornadas de trabalho e contato frequente com drogas estimulantes, não se
pode ignorar a presença do comportamento suicida nesta profissão.
Outro artigo publicado que me
chamou atenção foi este:
“Uma emoção pode ser a principal causa
de acidentes no trânsito; descubra qual é
Acredite ou não, existe uma emoção que
causa acidentes em grande proporção, ainda mais do que estar cansado ou distraído.
Um estudo mostrou que estar triste ou
depressivo afeta severamente a habilidade de dirigir. O artigo publicado no
site The Telegraph explica como estar triste,
irritado ou agitado aumenta o risco de um acidente em quase dez vezes.
Pesquisadores norte-americanos da
universidade Virginia Tech analisaram muitas das teorias para buscar as causas
mais comuns de acidentes.
Surpreendentemente, os estudos indicam
que interagir com uma criança pode reduzir o risco de uma batida. Comer e se maquiar
também não representam riscos significativos.
Contudo, a fadiga ainda é perigosa para
a segurança do trânsito: pode aumentar o risco de acidente em três vezes.
Chance maior do que falar ao telefone, por exemplo.
A pesquisa
Para chegar a essas conclusões, os
pesquisadores usaram câmeras de vídeo para monitorar os hábitos de mais de
3.500 pessoas em todos os Estados Unidos.
Durante o período de estudo, houve mais
de 900 acidentes em que as pessoas saíram feridas e com danos em seus
automóveis.
Os pesquisadores compararam essa
informação com dados de acidentes de carro e descobriram, primeiramente, que
mais da metade dos motoristas tinham algum tipo de comportamento
arriscado sempre que estavam dirigindo por uma estrada.
Veja mais dados relevantes:
- Conduzir triste aumentou o risco de acidente em 9,8 vezes.
- Procurar
um objeto no carro aumentou o risco de batida em 9 vezes.
- Mensagens
de texto ou revisar o celular aumentou o risco de acidente em 6 vezes.
- Dirigir
cansado aumentou o risco para 3 vezes. Enquanto falar com o
passageiro apontou risco mínimo e dançar ao volante não teve impacto.
O maior risco de acidente
Como era de se esperar, o consumo de
bebidas alcoólicas ou drogas aumentou as chances de acidente em mais de 35
vezes.
Com base nos resultados, os
especialistas consideram que mais de 30% dos acidentes podem ser evitados
eliminando todas as distrações.
No entanto, é importante não minimizar
o impacto de uma emoção ao dirigir e redobrar os cuidados quando for
necessário dirigir quando se está triste, desconfortável ou emocionalmente
instável.”
(https://www.metroworldnews.com.br/foco/2018/01/08/uma-emocao-pode-ser-principal-causa-de-acidentes-no-transito-descubra-qual-e.html)
Bem, encerrando este artigo, em que
procurei fazer uma relação entre a Semana do Trânsito e o Setembro Amarelo,
destacando a questão dos comportamentos suicidas no trânsito e a questão
emocional como influência importante. De modo algum considero que pude
contemplar toda a complexidade deste universo. Procurei principalmente instigar
a reflexão. Destaco que a sociedade (em especial as autoridades), precisa
atentar para as questões psicossociais envolvendo as ocorrências de suicídios,
sejam no trânsito ou fora deste, e que a vida humana em geral deve ser valorizada,
assim como os fatores ligados ao trânsito no Brasil, ressaltando as questões
comportamentais dos participantes do sistema, devem ser alvo de mais atenção,
fazendo-se mais investimentos em educação, infraestrutura, melhores veículos,
mais fiscalização, melhorias no transporte público e mais respeito às
categorias mais vulneráveis.
Deixo aqui, finalizando meu artigo,
trechos de uma entrevista com Reinier Rozestraten, Doutor em Psicologia, especialista em Psicologia do Trânsito, e meu
professor e orientador em dois cursos de pós graduação:
"O trânsito é um problema social.
Em cada cruzamento, constatamos que os pedestres, os carros, os ônibus, as
bicicletas etc. vão e vêm de diferentes direções. Em princípio, cada um deseja
passar por esse cruzamento permanecendo ileso e deixando o outro passar também
ileso. Na prática, a situação é mais complexa do que parece à primeira vista. O
motorista quer fluidez do tráfego de veículos, o pedestre precisa de menor
fluidez para que possa atravessar a rua e, por outro lado, o comerciante deseja
que os fregueses possam estacionar em frente a sua loja. Portanto, os
interesses das pessoas que participam do trânsito não são os mesmos, e entram
necessariamente em conflito.
E mesmo os interesses das pessoas são
variáveis conforme a situação. Por exemplo, uma pessoa quando é motorista vê o
pedestre como estorvo no seu caminho, mas quando essa mesma pessoa torna-se
pedestre vê o carro atrapalhando o seu caminho. Há uma ambivalência ou
contradição no seu julgamento da situação, dependendo da posição que ele está
assumindo. É um certo egoísmo no sentido de querer sempre em todas as situações
a garantia de todos os direitos e o mínimo possível de deveres a serem
cumpridos. Essa atitude interfere no trânsito para que não se tenha uma
consciência de que o trânsito é um jogo social, envolvendo motoristas e
pedestres, conforme regras definidas. A maioria imagina que pode fazer na hora
as regras conforme as suas conveniências porque ele é mais importante do que as
regras (...)”
“...Na nossa realidade, algumas pessoas
têm mais direitos do que os outros. O filho do prefeito, o deputado, a mulher
do governador e muitas outras pessoas acham que não precisam respeitar as
regras porque são exceções às regras. Assim, reforça-se o desrespeito às
regras, que depois se generaliza: se essas pessoas podem, por que eu, cidadão
comum, também não posso? Em outros países, o processo é totalmente inverso ao
nosso. Lembro que na Holanda, um policial multou o príncipe Bernard e por isso
foi condecorado. Quem vai ser condecorado no Brasil por multar o Presidente da
República?
No Brasil, quem é o mais forte tem mais
direitos, mas não deveria ter. Isso porque não há punição e nem fiscalização.
Você pode atropelar e até matar alguém com o carro, e fica impune. No
julgamento, são aceitos diversos argumentos de defesa: você não quis matar
propositalmente, é réu primário etc.
Se houvesse uma fiscalização mais séria
no trânsito, diminuiria sem dúvida o índice de acidentes. No Japão, eles
conseguiram procedendo dessa maneira: multas altas e fiscalização para todo
lado. Se você tem que pagar tanto porque o seu carro está mal estacionado,
dentro de uma semana ninguém mais vai estacionar mal. Aí acaba ficando caro e o
pessoal vai começar a pensar antes de levar multa.
É importante assegurar que o brasileiro
coloque na cabeça que as leis de trânsito não são imposições autoritárias. Elas
possuem uma vigência internacional e foram imaginadas para dar segurança a
todos aqueles que participam do trânsito.”
“...Os motoristas se impõem no trânsito
pela força bruta, respaldados pela impunidade. Tanto é que a maior porcentagem
de acidentes de trânsito é de atropelamento de pedestres. São 50 mil pessoas
que morrem no trânsito todo ano. A estatística oficial è de 23 mil, mas
refere-se somente àqueles que morrem no momento exato do acidente. Quem morre
sendo transportado para o hospital, ou morre dois ou três meses após o
acidente, não entra na estatística oficial. A mesma coisa acontece com todos os
acidentes que não constam nos Boletins de Ocorrência, pois a polícia não foi
chamada e tudo se resolveu informalmente entre os envolvidos(...)”
“...O Boletim de Ocorrência não fornece
informações suficientes sobre os acidentes. É preciso melhorar o Boletim de
Ocorrência e dar um treinamento aos policiais para obterem mais dados, deixando
de simplesmente acumular dados e números sem refletir a realidade. Deveria ser
feita uma estatística que signifique alguma coisa de maneira muito mais
diferenciada do que acontece hoje (...)”
“...Constatamos que o acidente ainda é
visto de modo muito genérico no Brasil. Quando há morte de duas pessoas ou
quando um carro bate o pára-choque num barranco, ambos os casos são
considerados acidentes, mas são completamente diferentes entre si. Por isso, é
preciso passar a fazer uma descrição mais minuciosa dos acidentes e dos
envolvidos neles, abrangendo classe social, faixa etária, local etc. É um
estudo de Psicologia Social que não foi feito ainda no Brasil (...)”
“...Em termos de epidemiologia, o
número de mortes de acidentes no trânsito é menor na realidade do que de mortes
por doenças cardiovasculares. Entretanto, mais de 30% morrem nos acidentes de
trânsito entre 18 e 30 anos, enquanto a maioria das vítimas de doenças
cardiovasculares morre com 40 ou 50 anos normalmente. Mesmo que as vítimas de
doenças cardiovasculares vivam até 70 anos, o número de anos de vida útil
destes é bem menor em relação aos acidentados no trânsito que teriam mais 40 ou
50 anos de vida pela frente. São pessoas jovens em quem não somente os pais,
como também a sociedade, investiram durante muito tempo. E, exatamente quando
chegam à idade produtiva, perdem a chance de poder dar um retorno à sociedade
por causa de um acidente de trânsito que pode ter acontecido por uma estupidez,
distração ou ignorância(...)”
“...Precisamos abandonar a ideia de que
o trânsito é um assunto só do DETRAN, do CONTRAN, do DNER. Os órgãos públicos
colocam as placas de sinalização, marcam as ruas etc., mas quem faz o trânsito
somos nós. Eles podem fazer o Código Nacional de Trânsito, mas quem obedece ou
desobedece somos nós. Todos nós participamos do trânsito e nessa medida temos
uma certa parcela de responsabilidade nisso.
Assim, o trânsito passa a ser visto
como um bem social que pertence a todos. Todos têm direito ao trânsito, que não
pertence somente a um ou a outro. Se alguém tem direito, também tem deveres em
relação aos outros, e vice-versa. Teria que haver uma mudança de consciência de
que o trânsito é de todos e para todos. Aí ocorreria uma tentativa de todo
mundo permanecer vivo, alcançar seu destino e ninguém se ferir ou morrer. Seria
um benefício para todos na sociedade e, nesse sentido, o trânsito deveria ser
um exercício de convivência pacífica."
Revista Psicologia e Profissão (1986)
Márcio José Matos Rodrigues-Psicólogo e
Professor de História
Figura:
https://www.google.com/search?q=imagem+de+tr%C3%A2nsito&sxsrf=ALiCzsaLMo8m0i_inUO5jEDrJ4QKEAlIHA%3A1663469173179&source=hp&ei=dYYmY4uBCfnS1sQPo_WX8Ag&iflsig=AJiK0e8AAAAAYyaUhWZef2VPb8x6R8ZEcRIqblugDQHx&ved=
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