Em 19 de maio de
1890, em Lisboa, nasceu o poeta, contista e ficcionista português Mário de Sá
Carneiro, um dos grandes nomes do modernismo em Portugal. Foi um respeitável
componente da chamada Geração d’Orpheu. Era filho e neto de
militares e sua família tinha boas condições financeiras, sendo Carlos
Augusto de Sá-Carneiro o seu pai e Águeda Maria de Sousa Peres Marinello
a sua mãe, que faleceu quando Mário tinha dois anos.
Com a morte da mãe,
Mário passou vários anos de sua infância com seus avós, na freguesia de
Camarate, próxima à Lisboa. Passou a estudar em 1900 no Liceu de Lisboa e
lá começou a escrever suas poesias aos 12 anos. E em 1905 redigiu e
imprimiu o jornal O Chinó, que era de tipo satírico.
Aos 15 anos Mário de
Sá já conseguia traduzir o autor francês Victor Hugo e aos 16 traduzia também
os autores alemães Goethe e Schiller. Como estudante nessa época teve algumas
experiências como ator. Escreveu em 1910, junto com Thomas Cabreira Júnior, que
veio a se suicidar um ano depois, a peça “Amizade”. Após a morte do amigo,
Mário lhe dedicou o poema “A Um Suicida”:
Tu crias em ti mesmo
e eras corajoso,
Tu tinhas ideais e tinhas confiança,
Oh! quantas vezes desesp'rançoso,
Não invejei a tua esp'rança!
Dizia para mim: — Aquele há-de vencer
Aquele há-de colar a boca sequiosa
Nuns lábios cor-de-rosa
Que eu nunca beijarei, que me farão morrer. (...)
Aos 21 anos Mário vai
estudar em Coimbra para a Faculdade de Direito, porém sem passar do primeiro
ano do curso, indo então para Paris para estudar, tendo apoio financeiro do
pai. Entretanto, em Paris começa a frequentar a boemia, indo a cafés e a espetáculos,
deixando os estudos que fazia na Sorbonne. Iniciou uma vida de sérias
dificuldades financeiras, ficando em um estado de desespero, ligando-se
emocionalmente a uma prostituta.
Foi em 1912 que Mário
conheceu outro grande escritor que veio a ser seu melhor amigo, o poeta
Fernando Pessoa. E em Paris conheceu o pintor Guilherme Santa-Rita. Em uma
situação que estava abalado psicologicamente e com dificuldade de adaptação
social, Mário criou muitas de suas obras poéticas e se correspondia
com Fernando Pessoa. No período entre 1912 e 1916 é que sua carreira literária
foi mais ativa. Em 1913 ele vai para Lisboa e entre esse ano e 1914 há uma
regularidade nas idas para esta cidade.
Influenciaram em suas
obras literárias os autores Edgar Allan Poe, Oscar Wilde, Charles Baudelaire,
Stéphane Mallarmé, Fiodor Dostoievsky, Cesário Verde e Antônio Nobre. Também
ele, Mário de Sá, influenciou outros autores como Eugênio de Andrade.
Mário de Sá formou
junto com Almeida Negreiros e Fernando Pessoa o primeiro grupo modernista
português, que tinha influências de vanguardas culturais europeias. Esse grupo
teve considerável participação na publicação da revista literária Orpheu,
que era editada por Antônio Ferro. Por causa da revista, o grupo tornou-se
conhecido como Geração d’Orpheu ou Grupo d’Orpheu.
A revista foi considerada naqueles tempos como um escândalo literário e só teve
dois números. A revista do número 3 chegou a ser impressa, porém sem ser
publicada e os autores foram discriminados pelas camadas conservadoras. Na atualidade,
a revista é reconhecida como um marco na história da literatura portuguesa e
que introduziu o Modernismo em Portugal.
Mário também
colaborou em outras publicações : no semanário Azulejos; na segunda
série da revista Alma Nova; na revista Contemporânea.
Anos depois da morte do poeta foram publicados escritos dele nas revistas
Pirâmide e Sudoeste.
Estando em Paris em
1915, escreve cartas para Fernando pessoa, revelando-se angustiado, tendo se
destacado ele como perdido no “labirinto de si próprio”. O seu processo de
escrita nessa época mostra uma evolução e uma maturidade. Ficou cada vez mais
preso a esse sentimento de angústia e veio a se envenenar em Paris, no Hotel de
Nice, morrendo, com vinte e cinco anos, em 26 de abril de 1916. Escreveu antes
uma carta de despedida para o amigo Fernando Pessoa na qual dizia:
Paris - 31 Março 1916
Meu Querido Amigo.
A menos de um milagre
na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu
Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste
mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo
ridículo que sempre encontrei nas "cartas de despedida"... Não vale a
pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto
sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que
tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei
pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade
– numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a
única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como
sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da
minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros
roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre,
psicologicamente, às mil maravilhas: mas não tenho dinheiro. [...]
Mário de Sá-Carneiro,
Carta para Fernando
Pessoa
Escreveu também
um poema sobre a questão de sua morte:
Fim
Quando eu morrer
batam em latas
Rompam aos saltos e
aos pinotes
Façam estalar no ar
chicotes
Chamem palhaços e
acrobatas!
Que o meu caixão vá
sobre um burro
Ajaezado à
andaluza...
A um morto nada se
recusa,
Eu quero por força ir
de burro!
Mário de Sá-Carneiro.
Paris. 1916.
Fernando Pessoa dedicou ao amigo um texto na revista Athena,
chamando Mário de “génio não só da arte como da inovação dela”. E faz um
comentário baseando-se em um aforismo das Báquides, do autor
Plauto: “Morre jovem o que os deuses amam”. Eis o texto:
“Génio na arte, não
teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou
que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses
fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os
acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão
ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor.
Mas para Sá-Carneiro,
génio não só da arte mas da inovação nela, juntou-se, à indiferença que
circunda os génios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como
Cassandra, de verdades que todos têm por mentira. In quascribebat,
barbaraterrafuit. Mas, se a terra fora outra, não variara o destino. Hoje, mais
que em outro tempo, qualquer privilégio é um castigo. Hoje, mais que nunca, se
sofre a própria grandeza. As plebes de todas as classes cobrem, como uma maré
morta, as ruínas do que foi grande e os alicerces desertos do que poderia
sê-lo. O circo, mais que em Roma que morria, é hoje a vida de todos; porém
alargou os seus muros até os confins da terra. A glória é dos gladiadores e dos
mimos. Decide supremo qualquer soldado bárbaro, que a guarda impôs imperador.
Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não
definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim. Fernando Pessoa
Athena n.º 2, Lisboa,
Novembro, 1924. “
Mário de Sá foi influenciado pelas
seguintes correntes literárias: decadentismo, o simbolismo, ou
o saudosismo. Depois, influenciado por Fernando Pessoa, aderiu a
outras correntes como o interseccionismo e o futurismo.
Mostrou em suas poesias a sua personalidade, com destaque para a confusão dos
sentidos, o delírio e revelando um narcisismo e egolatria. As carências
afetivas podem tê-lo levado a esse narcisismo e a um sentimento de solidão e de
frustração. As características de sua personalidade levam-no depois a uma
poesia com uma agitação de experiências sensórias, com o poeta pervertendo e
subvertendo a ordem lógica das coisas. Há estudiosos que dizem que tendo lido a
obra De Profundis, de Oscar Wilde, Mário aumentou sua angústia e
decidiu-se por fim a sua vida. Na segunda fase de suas obras, uma fase mais
niilista, percebe-se na poesia de Mário de Sá uma humanidade autêntica, triste
e trágica.
Segundo a autora Dilva Frazão:
“(...) Em 1911, Mário
de Sá-Carneiro foi para Coimbra e matriculou-se na Faculdade de Direito, mas
interrompeu os estudos. Em 1912 iniciou sua amizade com Fernando Pessoa. Nesse
mesmo ano, com o apoio financeiro do pai, foi para Paris e matriculou-se na Faculdade
de Direito. Nessa época, publicou um livro de contos, “Princípio”.
Carreira Literária
Em 1914, no começo da
Primeira Guerra Mundial, Mário de Sá-Carneiro voltou para Lisboa e
juntou-se a Fernando Pessoa para colaborar com a revista “Orpheu” que tinha o
objetivo de divulgar os novos ideais estéticos, procurando acompanhar as
transformações culturais ocorridas em toda a Europa.
Ainda em 1914, Mário
de Sá-Carneiro publicou duas obras: o livro de poemas, “Dispersão” e a novela
“Confissões de Lúcio”. Viveu um tempo de grande euforia em torno do início do
movimento modernista português.
Em abril de 1915, foi
lançado o primeiro número da revista Orpheu. No final de 1915, Sá-Carneiro
publicou o livro de contos, “Céu em Fogo”. Em julho, saiu o segundo número da
revista.
Depois que retornou a
Paris a vida de Mário de Sá-Carneiro mudou radicalmente após seu pai
entrar em falência e cortar a mesada que o sustentava.
Além da dificuldade
financeira e da crise geral que todos passavam Mário de Sá-Carneiro chegou a pensar
em suicídio. Possibilidade que comentara com os amigos, inclusive com Fernando
Pessoa, com quem se correspondia, sem que ninguém lhe desse muito crédito.
(...) “
E ainda a mesma
autora:
“A Poesia de Mário de
Sá Carneiro
A obra de Mário de
Sá-Carneiro ocupa um lugar de destaque na literatura portuguesa, sobretudo pela
poesia. Foi um poeta em todos os domínios, até mesmo no teatro e na prosa.
A sensibilidade e o
espírito doentio dominava-lhe a criação poética a tal ponto, que em quase todos
os versos estampa-se um perene descontentamento com a vida e com o mundo, como
no poema “Dispersão”:
Perdi-me dentro de
mim
Porque eu era labirinto,
E Hoje, quando me sinto,
E com saudade de mim.
Passei pela minha
vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
nem dei pela minha vida. (...)
Não sinto o espaço
que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto. (...)
Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... (...)
No poema “Quase”,
considerado uma de suas melhores produções, Mário Sá-Carneiro define bem sua
crise de personalidade:
Um pouco mais de sol
– eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em
vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espumas;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido... (...)
De tudo houve um
começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou, mas não voou... (...)
Obras de Mário
Sá-Carneiro
Contos: Princípio (1912);Céu
em Fogo (1915)
Novela: A Confissão de Lúcio
(1914)
Poesia: Dispersão
(1914);Indícios de Oiro (1937)
Teatro: Amizade (1912)
Cartas a Fernando
Pessoa (publicadas postumamente em dois volumes em 1958-1959).”
_____________________________________________
A seguir uma carta de Mário Sá-Carneiro
a Fernando Pessoa:
“Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à
morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos
abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos
mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam
ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são
materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não
permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir -
apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que
mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os
“isolados” que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam
inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive -
não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente -
ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os
corpos morreriam.”
Mário de Sá-Carneiro (Cartas a Fernando
Pessoa )
Sugestão de música
para ouvir: Adriana Calcanhoto canta O Outro. Poesia de Mário
Sá-Carneiro. https://www.youtube.com/watch?v=zRKVQNmXr0M
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Márcio José Matos Rodrigues-Professor
de História.
Figura:
https://www.google.com/search?q=imagem+de+mario+sa+carneiro&sxsrf=ALeKk00IU1WEzYATC8Gi8Ugh9BvYDFjxbg:1621021519962&tbm=isch&source
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