Vi recentemente o filme Assassinos da Lua das Flores, dirigido por Martin Scorsese, com os atores de renome Leonardo Di Caprio e Robert De Niro. O filme é baseado na obra do autor David Grann, que fez um trabalho de investigação para escrever o livro que serviu posteriormente de base para o filme.
Os roteiristas Martin
Scorsese e Eric Roth procuraram agir com
respeito ao povo Osage. Scorsese se consultou com lideranças desse povo para
evitar estereótipos
negativos contra nativos americanos. A atriz indígena Lily Gladstone teve destaque
no filme. Ela disse em uma entrevista para a Variety: "conforme a comunidade [indígena] se aqueceu com
nossa presença, mais eles ficaram envolvidos com o filme. É uma obra diferente
daquela que [Scorsese] chegou para fazer, por conta do que a comunidade [Osage]
tinha a dizer sobre como o filme estava sendo feito e o que ele estava
retratando".
Por que “Assassinos da
Lua das Flores”? Na verdade o autor do livro usou uma metáfora para se referir
aos homens que seguem uma ganância e se apoiam no preconceito para tocar em
frente as ações de sua vida. O livro foi lançado em 2017. No livro o autor
explica que é comum uma grande lua aparecer no mês de maio e aí plantas maiores
engolem as menores.
Como se vê no filme, os Osage foram expulsos
de suas terras originais pelo governo dos Estados Unidos, que se valia de seu
forte exército para intervir junto às nações nativas e para garantir a
superioridade dos descendentes de europeus, que tomavam as terras para plantar,
criar gado e morar, além de caçar os animais que davam sustento aos indígenas.
O povo Osage, embora forçado a
migrar, teve a “sorte” de encontrar petróleo em suas novas terras no final do
século XIX, no Oklahoma, o que os deixou ricos, mas ainda explorados,
discriminados e o que é pior, sujeitos a assassinatos. A situação do Oklahoma
(declarado Estado em 1907) era, no início do século XX , assim como outros
Estados dos Estados Unidos, de considerável preconceito dos brancos em relação
aos indígenas e negros.
Os Osage aparentemente pareciam
gozar de certa liberdade e aceitação, mas essa situação era ilusória, pois a
riqueza do petróleo os colocou como alvos da cobiça do homem branco. Além da
questão dos Osage, havia outras questões sociais graves em diversos Estados,
que revelavam muitas injustiças . Um caso que ficou famoso, que até é
rapidamente mencionado no filme, é o massacre de Tulsa (31 de maio a 1 de junho
de 2021), com um número de mortos entre 100 a 300, sendo a maioria de negros.
Nesse massacre participaram multidões de brancos que atacaram pessoas negras e
suas residências e comércios. Houve centenas de feridos e mais de 6000 negros
foram presos e detidos por dias.
Voltando ao povo nativo (relatado no
filme), vou contar um pouco da história dele. Os Osage são também conhecidos
como NiuKonska ou Ni-U-Kon-Ska, (“filhos das águas médias). O nome
no idioma osage é Wazházhe, que os franceses chamaram de Ouazhigi
e na língua inglesa ficou Osage.
Os Osage habitaram regiões centrais e do nordeste da América do Norteantes da chegada dos colonizadores e fizeram parte da cultura do Mississipi. Sua alimentação era baseada no milho, na abóbora e em carne de cervo e búfalo. Foram um povo guerreiro e chegaram a ter armas de fogo no tempo que a colonização branca estava em andamento, tendo controlado a região entre o Oeste estadunidense, com muitos povos indígenas, e o crescente Leste colonizado e até o século XIX controlaram o comércio entre colonizadores e indígenas. O governo dos Estados Unidos assinou acordos com os Osage no período de 1809 a 1870 fazendo o esse povo perder mais de 40 mil quilômetros de território, tendo a nação Osage a migrado em 1872 para as áreas de Pawhuska, Hominy e Gray Horse. Tornaram-se a única nação indígena a comprar sua própria reserva (um lugar seco e cheio de pedras no Oklahoma) e foi nessa reserva que, em 1894 foi descoberto petróleo.
Segundo a Sociedade Histórica de Oklahoma: “Os
royalties eram pagos à Tribo como um todo e distribuídos igualmemte entre os
mebros, com cada beneficiário recebendo uma fatia igual”. E também disse a mesma sociedade:
“Esse
direito era hereditário e repassado aos herdeiros legais imediatos de um
beneficiário falecido. E não era preciso pertencer à tribo Osage para herdar
esse direito”.
O FBI, que investigou o caso dos assassinatos disse: “À medida que a notícia (da fortuna) se espalhou, oportunistas chegaram às terras dos Osage, procurando separá-los da sua riqueza por qualquer meio necessário – até mesmo assassinato”.
Baseando-se na história dos Osage em relação ao petróleo e as tentativas de acabar com este povo para roubar sua riqueza nesse recurso , o autor David Grann escreveu sua obra. Os Osage passaram a ser o povo nativo norte-americano o mais rico per capita do mundo no começo dos anos 20 do século passado. Em locais como Gray Horse surgiram várias casas luxuosas e carros grandes, assim como indígenas com empregados. Porém, uma camada de homens brancos se organizou para enganar , roubar e matar indígenas, com a conivência de autoridades e forças de segurança. Foi uma época que os Osage definiram como uma “orgia de golpes e exploração”.
Essa história triste tem sido ignorada e não é estudada nas escolas nos Estados Unidos. O cabeça do bando de ladrões e assassinos de indígenas era William King Hale, proprietário de bancos e lojas e detentor de grande influência política,que elaborou o plano que envolvia roubo e destruição do povo Osage. Pelo lado indígena, a osage Mollie Burkhart perdeu sua família devido aos assassinatos, intoxicações, desaparecimentos e mortes por doenças estranhas.
O sistema de leis que começava as injustiças
contra os indígenas dizia que os direitos de exploração os recursos da reserva
só podiam chegar a mãos alheias à sua linhagem por herança. O Estado declarou
os Osage menores de idade e nomeou um tutor branco para cada fortuna do
petróleo . Aproveitando o contexto, homens brancos casavam com mulheres osage
para depois as matarem e o bando herdar os bens dos indígenas. Segundo Grann, o
livro vai além de uma pesquisa clássica em busca de saber quem havia cometido o
crime, passando a descrever “uma cultura do assassinato”.
Para procurar saber
o que estava acontecendo, para saber a razão da morte de tantos indígenas de
formas trágicas os Osage contrataram detetives
particulares como o famoso William J. Burns e profissionais da agência
Pinkerton. Porém, a conivência das autoridades, da polícia e dos juízes com os
assassinos causou muitas dificuldades e não houve sucesso no trabalho desses
investigadores. O advogado W.W. Vaughan, que se interessou pela causa dos
indígenas foi assassinado. Ele possuía provas concretas sobre os planos sujos
contra os Osage. A imprensa mencionava uma trama contra os “índios ricos”,
porém não eram tomadas providências legais para se acabar com as injustiças e
mortes. Houve na época a participação nas investigações da agência federal dos
Estados Unidos que deu origem depois ao FBI.
O FBI originou-se do órgão criado em 1908 e
sua figura central era J. Edgar Hoover. Na década de 20 do século passado a
agência ainda era frágil e com pouca jurisdição em casos de assassinatos, porém
com autonomia para agir em terras indígenas.
Foi em
março de 1923 que o conselho tribal pediu ao governo federal que enviasse
detetives para ajudar a investigar os casos. Entra em cena o Bureau of Investigation
(BOI, precursor do FBI), que mandou um grupo de agentes para o território Osage.
Era uma agência ainda pequena, com menos de 20 anos de existência. As mortes
dos indígenas Osage passaram a ser seu primeiro grande caso de homicídio, sendo
consideradas um marco crucial na criação do FBI.
No caso o chefe da investigação foi o agente
White, um texano que não usava armas e que era respeitado. Segundo Grann sobre
o caso investigado pelo FBI: “Hoover o usou para avançar em todos os sentidos.
Foi assim que acumulou todo o poder e começou a abusar dele. Tinha apenas 28
anos, mas já se via seu gênio organizativo, sua megalomania e sua obsessão pela
boa imprensa”.
Devido às investigações da agência federal o
líder criminoso William Hale foi condenado em relação a alguns
assassinatos. O autor do livro descobriu que a situação era mais complexa do
que tinha sido revelado pela agência. Disse Grann:
“Sou um
grande leitor de romances policiais e isso me ajudou muito. Além disso, as
pessoas viveram aquilo como um mistério. Mollie não sabia quem seria o próximo
a morrer, quem os estava matando. Com essa forma de narrar tento capturar o
leitor e transmitir a realidade da melhor forma possível”. Uma neta de uma das
vítimas indígenas disse: “Estas terras estão encharcadas de sangue”.
No total, cerca de 60 pessoas, entre
indígenas, testemunhas e investigadores não indígenas, morreram no caso dos
Osage no período entre 1921 e 1925. Essa série de crimes ficou conhecida como “Reinado do Terror”.
Segundo os arquivos do FBI, a respeito dos
primeiros casos que chamaram a atenção em maio de 1921: “O
corpo decomposto de Anna Brown, uma indígena Osage, foi encontrado em um
barranco em uma área remota. O agente funerário descobriu um ferimento a bala
em sua nuca”. Também nessa época houve os casos de Charles Whitehorn,
encontrado morto com marcas de tiros e Minnie, irmã de Anna, morreu por causa
de uma doença misteriosa. Em 1923 foi morto a tiros Henry Roan, primo de Anna e
Rita Smith, casada com William E. Smith e irmã de Anna foi morta junto com o
marido e uma empregada devido uma explosão que destruiu a casa onde estavam. Em
seguida, outras 20 mortes ocorreram sem explicação. Quem suspeitasse ou
apontasse evidências sobre os crimes era ameaçado ou assassinado. Segundo a Sociedade Histórica de Oklahoma:
“As mortes de algumas supostas vítimas que não apresentavam
ferimentos visíveis foram simplesmente atribuídas a "indigestão",
"doenças peculiares" ou "causas desconhecidas”. Um fator comum a
todos os Osage mortos é que tinham direitos à renda de petróleo, que poderiam
repassar a seus herdeiros. Mollie, por exemplo, casada com Ernest Burkhardt, um
homem branco herdou uma fortuna devido à morte de Anna, Lizzie e Rita. Segundo
a agência de investigação federal: “Mollie Burkhart estava arrasada e também
afligida por uma doença misteriosa.” Investigações descobriram que ela estava
sendo envenenada. O tio de Ernest era Hale, o chefe do esquema criminoso.
Relato da agência federal disse: “Se Anna (a primeira vítima), sua mãe e duas
irmãs morressem, todos os direitos (relativos à renda com o petróleo) passariam
para Ernest, e Hale poderia assumir o controle”.
.
A ação
do enviado especial para comandar as investigações pela agência federal BOI ( que veio a originar o FBI), Tom
White, junto com outros agentes disfarçados de vendedores de seguros ou
compradores de gado, entre outras profissões, foi crucial para desvendar o
caso. Conseguiu-se provar que Hale tinha sido o mandante do assassinato dos
membros da família de Mollie para herdar
os direitos ao petróleo. Assim, Hale,
Burkhart e Ramsey foram as pessoas detidas em janeiro de 1926 e depois de três
meses foram presos também Kelsie Morrison e Byron Burkhart, irmão de Ernest
Burkhardt
Por
três anos houve julgamentos em tribunais estaduais e federais, com bastante
acompanhamento da mídia. Apesar de Ernest Burkhart, Hale, Ramsey e Morrison
terem sido sentenciados à prisão perpétua, alguns anos depois ganharam a
liberdade
Finalmente,
em 1925 foi aprovada uma lei pelo Congresso dos Estados Unidos proibindo
pessoas que não sejam Osage de herdar os direitos (ao petróleo) de membros desse grupo. Porém segundo os Osage há ainda 26% desses direitos nas mãos de
pessoas e instituições que não tem relação com esta nação indígena
A atriz descendente de indígenas DeveryJacobs
fez algumas
críticas ao filme. Segundo ela a visão de Scorsese sobre os Osage no filme foi "dolorosa, cansativa e desnecessariamente gráfica".
Disse ainda:
"Para mim, como nativa, assistir a
esse filme foi como ir ao inferno. Imagine as piores atrocidades cometidas
contra seus antepassados, então assista a um filme explicitamente preenchido
com elas, com o único descanso sendo cenas de 8 minutos, com homens brancos
assassinos falando sobre como pretendem fazer seus assassinatos.
Deve-se notar que Lily Gladstone é uma
lenda absoluta e carrega Mollie com tremenda graça. Todos os incríveis atores
indígenas foram os únicos fatores redentores deste filme. Deem a Lily seu
maldito Oscar!
Mas embora todas as performances tenham
sido fortes, se você olhar proporcionalmente, cada um dos personagens Osage
parece dolorosamente subscrito, enquanto os homens brancos receberam muito mais
cortesia e profundidade.
No entanto, entendo que a direção técnica
de Martin Scorsese é convincente, e ver os US$ 200 milhões em tela é um
espetáculo. Eu entendo que o objetivo dessa violência é adicionar um valor de
choque brutal, que força o entendimento dos verdadeiros horrores que
aconteceram com essa comunidade, mas... Não sinto que essas pessoas muito reais
tenham recebido honra ou dignidade no retrato horrível de suas mortes.
Ao contrário, acredito que, ao mostrar mais
mulheres indígenas assassinadas na tela, isso normaliza a violência cometida
contra nós e desumaniza ainda mais nosso povo.
E ainda por cima, ver como os nerds do
cinema estão comemorando isso? Faz meu estômago doer!
Não acredito que isso precise ser dito, mas
povos indígenas existem além de nossa dor, trauma e atrocidades. Nosso orgulho
de ser nativo, nossas línguas, culturas, alegria e amor são muito mais
interessantes e humanizadores do que mostrar os horrores que os homens brancos
nos infligiram.
Este é o problema de quando os diretores
não-nativos têm a liberdade de contar nossas histórias, eles centram a
perspectiva branca e se concentram na dor dos povos nativos.
Para as comunidades Osage envolvidas na
criação deste filme, imagino o quão catártico é ter essas histórias finalmente
reconhecidas, especialmente em uma plataforma tão prestigiada como este filme.
Houve um belo trabalho feito por muitos Wazhazhe neste filme.
Mas, admito, eu preferiria ver um cineasta
Osage contando essa história em um filme de US$ 200 milhões.
E me desculpe, mas Scorsese optar por
terminar com uma cena de danças e batuques de Ilonshka? Isso não absolve o
filme de fazer dos nativos vítimas indefesas sem assistência.
R.I.P. para Mollie, Anna, Minnie, Rita, e
todas as outras pessoas Osage muito reais que foram assassinadas por ganância.
Sinto muito pelo povo Osage de hoje, cujas histórias familiares foram marcadas
por essas atrocidades. A dor é real e não se limita às 3h e 26 minutos do
filme.
E um enorme dane-se para a vida real, pros
brancos de Oklahoma, que ainda carregam e se beneficiam dessas cabeças
manchadas de sangue.
Em suma, o que foi
retratado no cinema, essa é realmente a representação que precisávamos?"
Sobre o filme disse o crítico de cinema Marco
Antônio Moreira:
“Assassinos da Lua das Flores comprova Martin
Scorsese como um cineasta que atingiu a plenitude de sua expressão artística,
ao criar um filme que desvela os trágicos assassinatos de indígenas Osage nos
Estados Unidos na década de 1920. Inspirado no livro de David Grann, o filme tece uma narrativa
envolvente que revela as complexas
dinâmicas de poder dos homens brancos que
exploraram oportunidades de enriquecimento por meio das terras pertencentes à
tribo Osage.
Com uma abordagem cuidadosa, o filme ilustra
de maneira paciente e perspicaz as múltiplas formas de manipulação, seja no
âmbito financeiro, emocional ou político, em relação aos indígenas. Essa
abordagem revela imagens e palavras com um profundo respeito pelo espectador por
meio de uma linguagem que permite a
progressão gradual da trama. Ao contrário das produções contemporâneas que
muitas vezes cedem à pressa Scorsese entrega um filme de longa duração no qual
cada minuto é precioso, proporcionando ao espectador uma compreensão profunda e
necessária dos horrores desse triste capítulo da historia dos Estados Unidos...”
Márcio José Matos Rodrigues-Professor de
História
Figura: https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&sca_esv=580743629&q=imagem+de+assassino+da+lua+das+flores&tbm=
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