O mundo se surpreendeu (inclusive a
Inteligência militar dos Estados Unidos), com a rápida queda de Cabul, capital
do Afeganistão no dia 15 de agosto deste ano, após algumas horas de cerco. Mas
teria sido essa a melhor decisão política e militar do presidente já combalido
regime afegão apoiado pelos Estados Unidos? A meu ver sim e uma resistência
tipo Berlim em 1945 teria sido tão inútil como foi com a capital alemã no fim
da Segunda Guerra Mundial. Nos dois casos, a vitória do sitiado era impossível,
diante de um inimigo numericamente superior, sem perspectivas de vencer, apenas
para manter uma resistência, que no caso da cidade alemã provocou ainda mais
mortes e destruição e, no caso afegão, aconteceria o mesmo. E em casos assim a
ferocidade dos combates pode vir acompanhada de terror contra os civis (saques,
assassinatos, torturas, estupros etc).
E por que um regime apoiado por quase
vinte anos pelos Estados Unidos, uma grande potência mundial, caiu diante de um
força guerrilheira que no final de 2001 foi atacada poderosamente por este país
e que na época parecia derrotada e não seria mais capaz de ocupar o
poder, embora não tenha deixado de existir?
Para compreender essa vitória talibã é
preciso entender que, embora tenha sido por vários anos auxiliado pelos Estados
Unidos, inclusive com tropas e aviação militar, o regime deposto tinha
fragilidades que lhe foram fatais. Um exército atingido pela corrupção, pela
perda da vontade de lutar de muitos soldados, com problemas de comando e com
número de combatentes significativamente reduzido por frequentes deserções.
Enquanto isso, o talibã crescia em número de integrantes de suas fileiras,
recebia apoios do Paquistão, tinha auxílios financeiros de simpatizantes no
mundo islâmico e se valia de receitas oriundas de fontes como tráfico de drogas
e extorsão sobre atividades econômicas como a mineração. A força aérea afegã
que defendia o regime anterior também possuía problemas sérios como
deficiências na manutenção de aeronaves e a pouca eficácia de suas ações. Outro
fator foi a questão ideológica, pois se o exército afegão estava em grande
parte desmotivado, muitos guerrilheiros afegãos eram dotados da vontade de
lutar impulsionada pelo fervor religioso. E as perdas norte-americanas em vidas
de soldados e mais as despesas com manutenção de suas forças foram se tornando
muito custosas aos Estados Unidos, cujo governo decidiu pela retirada.
Na verdade, em outros momentos da
história, regimes apoiados pelos Estados Unidos com muito dinheiro e armas
sucumbiram diante da corrupção interna e de um inimigo muito mais motivado,
como no caso do exército cubano de Batista frente às forças revolucionárias
castristas e o exército sul vietnamita diante do avanço do exército do Vietnã
do Norte, que pretendia unificar o país. Aliás, há comentários de que a
retirada de Cabul por parte de diplomatas e soldados remanescentes dos Estados
Unidos tem suas semelhanças com a retirada norte-americana de Saigon nos anos
70 do século XX.
Pode ser que haja quem ache que a
vitória do Talibã se deu por causa de apoios da Rússia e da China, mas estes
países não foram os maiores responsáveis pela vitória do grupo. Podem até
ter-lhe dado algum auxílio, mas este foi secundário. Existe atualmente um
oportunismo destes países, que estão vendo no regime talibã um possível aliado
ou parceiro em questões relativas ao Oriente Médio, fazendo frente aos
interesses de países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. No caso da
China, é provável até que haja, posteriormente, investimentos na infraestrutura
do Afeganistão ou empréstimos financeiros, colocando cada vez mais este país em
sua órbita de influência, como tem feito com países africanos. É de se
salientar que o governo Trump fez acordo com as lideranças talibãs em 2020 para
a retirada das tropas em troca de um compromisso de que o governo talibã
instalado não daria apoio ao Estado Islâmico e à Al-Qaeda. Também o Irã,
embora xiita e o Talibã sunita, acenou com acordos com os líderes talibãs,
possivelmente por questões estratégicas no jogo de poder da região.
Mais uma vez uma grande potência foi
derrotada no Afeganistão. No início de 1989 as últimas forças soviéticas
deixaram o Afeganistão após cerca de nove anos de combates. A URSS havia
invadido o Afeganistão em defesa de seu regime aliado de tendência socialista.
No contexto da Guerra Fria os Estados Unidos ajudaram
maciçamente na época grupos guerrilheiros tribais e o fim do regime socialista
afegão em 1992 provocou uma luta pelo poder por diversas forças guerrilheiras,
luta essa que só terminou quando o Talibã, criado no início dos anos 90 como um
grupo religioso fundamentalista, que veio a contar com apoio de militares
paquistaneses, tornou-se poderoso militarmente e derrotou os grupos rivais,
tomando o poder em 1996 e ocupando a maior parte do país. É de se ressaltar,
que o governo do Paquistão, que deu apoio aos talibãs, na época era aliado dos
Estados Unidos na região e ainda é.
Foi em 2001, com a intervenção dos
Estados Unidos no Afeganistão, após os ataques de 11 de setembro, que o regime
talibã foi afastado do poder. Mas ele não foi aniquilado, voltou a combater e
se fortaleceu. Agora, é a força vencedora. Muitos afegãos fugiram do país
durante os combates entre talibãs e o exército agora derrotado, assim como
tantos foram embora durante a guerra entre soviéticos e grupos guerrilheiros.
E, novamente, vê-se a possibilidade de milhões tentarem sair do país para
escaparem de um regime que, se repetir o tipo de governo que tinha antes da
invasão dos Estados Unidos em 2001, implantará um severo domínio religioso,
tornando os costumes muito mais rigorosos e um controle maior sobre a vida das
mulheres, proibindo-as de trabalhar, estudar e sair sem a companhia de um
membro masculino da família, além de impor uma vestimenta que cubra totalmente
os rostos delas.
Uma comunicação do Talibã pouco antes
de tomar Cabul dizia que a partir de agora a imprensa será respeitada, haverá
diplomacia e autorização para que as mulheres deixem suas casas sozinhas e
possam estudar (desde que com os rostos cobertos). Mas quem garante que isto
seja verdade? Ou será só uma forma de propaganda para tentar agradar o
Ocidente? Não devemos esquecer que, em 2012, a atual ativista pelos direitos
humanos, Malala Yousafzai, foi alvejada quando ainda era uma criança, por
talibãs no interior do Paquistão, justamente por defender o direito das meninas
poderem estudar. Nos últimos dias tem-se visto professores se despedirem de
suas alunas, dando a entender que será o fim de seus estudos. Portanto, é bem
provável que a propaganda talibã de uma amenização das regras sobre as mulheres
seja apenas uma forma de ilusão. E como ficará a questão dos refugiados?
Encontrarão abrigo entre as nações que apoiaram o regime deposto ou serão
negligenciados como foi grande parte de líbios e sírios que procuraram abrigo
no Ocidente após suas nações se fragmentarem em guerras civis com a
participação direta ou indireta de países do Ocidente?
Segundo a revista Veja de
11 de agosto de 2021: “Desde o início de 2021, 330.000 pessoas deixaram suas
casas, em busca de refúgio nas cidades grandes e atravessando fronteiras (os
afegãos formam o segundo maior contingente de refugiados do mundo, cerca de 3
milhões, atrás apenas dos sírios). Milhares de cidadãos que trabalharam para os
Estados Unidos aguardam vistos para irem embora. Em redutos isolados, senhores da
guerra que nunca prestaram contas ao governo armam milícias para proteger seus
domínios da ressurreição do Talibã. No país pobre e despedaçado que duas
superpotências não conseguiram controlar, um novo capítulo se inicia, sem
nenhuma expectativa de melhora no horizonte”.
Sugestão de vídeos:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/08/16/taliba-afeganistao-cabul.ghtml
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2021/08/16/afeganistao-taliba-territorios-ja-sob-controle.htm
https://www.opovo.com.br/noticias/mundo/2021/08/16/afeganistao-taliba-assume-governo-do-pais-entenda-o-conflito.html
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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História
Figura:
https://www.google.com/search?sxsrf=ALeKk02jS_Ohk3BauPyQgZrNp7JjCOrz4A:1629142462425&source=univ&tbm=isch&q=imagens+de+cabul+hoje&sa
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