segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A queda de Cabul

 








O mundo se surpreendeu (inclusive a Inteligência militar dos Estados Unidos), com a rápida queda de Cabul, capital do Afeganistão no dia 15 de agosto deste ano, após algumas horas de cerco. Mas teria sido essa a melhor decisão política e militar do presidente já combalido regime afegão apoiado pelos Estados Unidos? A meu ver sim e uma resistência tipo Berlim em 1945 teria sido tão inútil como foi com a capital alemã no fim da Segunda Guerra Mundial. Nos dois casos, a vitória do sitiado era impossível, diante de um inimigo numericamente superior, sem perspectivas de vencer, apenas para manter uma resistência, que no caso da cidade alemã provocou ainda mais mortes e destruição e, no caso afegão, aconteceria o mesmo. E em casos assim a ferocidade dos combates pode vir acompanhada de terror contra os civis (saques, assassinatos, torturas, estupros etc). 

E por que um regime apoiado por quase vinte anos pelos Estados Unidos, uma grande potência mundial, caiu diante de um força guerrilheira que no final de 2001 foi atacada poderosamente por este país e que na época parecia derrotada e  não seria mais capaz de ocupar o poder, embora não tenha deixado de existir?

Para compreender essa vitória talibã é preciso entender que, embora tenha sido por vários anos auxiliado pelos Estados Unidos, inclusive com tropas e aviação militar, o regime deposto tinha fragilidades que lhe foram fatais. Um exército atingido pela corrupção, pela perda da vontade de lutar de muitos soldados, com problemas de comando e com número de combatentes significativamente reduzido por frequentes deserções. Enquanto isso, o talibã crescia em número de integrantes de suas fileiras, recebia apoios do Paquistão, tinha auxílios financeiros de simpatizantes no mundo islâmico e se valia de receitas oriundas de fontes como tráfico de drogas e extorsão sobre atividades econômicas como a mineração. A força aérea afegã que defendia o regime anterior também possuía problemas sérios como deficiências na manutenção de aeronaves e a pouca eficácia de suas ações. Outro fator foi a questão ideológica, pois se o exército afegão estava em grande parte desmotivado, muitos guerrilheiros afegãos eram dotados da vontade de lutar impulsionada pelo fervor religioso. E as perdas norte-americanas em vidas de soldados e mais as despesas com manutenção de suas forças foram se tornando muito custosas aos Estados Unidos, cujo governo decidiu pela retirada.

Na verdade, em outros momentos da história, regimes apoiados pelos Estados Unidos com muito dinheiro e armas sucumbiram diante da corrupção interna e de um inimigo muito mais motivado, como no caso do exército cubano de Batista frente às forças revolucionárias castristas e o exército sul vietnamita diante do avanço do exército do Vietnã do Norte, que pretendia unificar o país. Aliás, há comentários de que a retirada de Cabul por parte de diplomatas e soldados remanescentes dos Estados Unidos tem suas semelhanças com a retirada norte-americana de Saigon nos anos 70 do século XX.

Pode ser que haja quem ache que a vitória do Talibã se deu por causa de apoios da Rússia e da China, mas estes países não foram os maiores responsáveis pela vitória do grupo. Podem até ter-lhe dado algum auxílio, mas este foi secundário. Existe atualmente um oportunismo destes países, que estão vendo no regime talibã um possível aliado ou parceiro em questões relativas ao Oriente Médio, fazendo frente aos interesses de países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. No caso da China, é provável até que haja, posteriormente, investimentos na infraestrutura do Afeganistão ou empréstimos financeiros, colocando cada vez mais este país em sua órbita de influência, como tem feito com países africanos. É de se salientar que o governo Trump fez acordo com as lideranças talibãs em 2020 para a retirada das tropas em troca de um compromisso de que o governo talibã instalado não daria apoio ao Estado Islâmico e à Al-Qaeda. Também o Irã, embora xiita e o Talibã sunita, acenou com acordos com os líderes talibãs, possivelmente por questões estratégicas no jogo de poder da região.

Mais uma vez uma grande potência foi derrotada no Afeganistão. No início de 1989 as últimas forças soviéticas deixaram o Afeganistão após cerca de nove anos de combates. A URSS havia invadido o Afeganistão em defesa de seu regime aliado de tendência socialista. No contexto da Guerra Fria os Estados Unidos ajudaram maciçamente na época grupos guerrilheiros tribais e o fim do regime socialista afegão em 1992 provocou uma luta pelo poder por diversas forças guerrilheiras, luta essa que só terminou quando o Talibã, criado no início dos anos 90 como um grupo religioso fundamentalista, que veio a contar com apoio de militares paquistaneses, tornou-se poderoso militarmente e derrotou os grupos rivais, tomando o poder em 1996 e ocupando a maior parte do país. É de se ressaltar, que o governo do Paquistão, que deu apoio aos talibãs, na época era aliado dos Estados Unidos na região e ainda é.

Foi em 2001, com a intervenção dos Estados Unidos no Afeganistão, após os ataques de 11 de setembro, que o regime talibã foi afastado do poder. Mas ele não foi aniquilado, voltou a combater e se fortaleceu. Agora, é a força vencedora. Muitos afegãos fugiram do país durante os combates entre talibãs e o exército agora derrotado, assim como tantos foram embora durante a guerra entre soviéticos e grupos guerrilheiros. E, novamente, vê-se a possibilidade de milhões tentarem sair do país para escaparem de um regime que, se repetir o tipo de governo que tinha antes da invasão dos Estados Unidos em 2001, implantará um severo domínio religioso, tornando os costumes muito mais rigorosos e um controle maior sobre a vida das mulheres, proibindo-as de trabalhar, estudar e sair sem a companhia de um membro masculino da família, além de impor uma vestimenta que cubra totalmente os rostos delas.

Uma comunicação do Talibã pouco antes de tomar Cabul dizia que a partir de agora a imprensa será respeitada, haverá diplomacia e autorização para que as mulheres deixem suas casas sozinhas e possam estudar (desde que com os rostos cobertos). Mas quem garante que isto seja verdade? Ou será só uma forma de propaganda para tentar agradar o Ocidente? Não devemos esquecer que, em 2012, a atual ativista pelos direitos humanos, Malala Yousafzai, foi alvejada quando ainda era uma criança, por talibãs no interior do Paquistão, justamente por defender o direito das meninas poderem estudar. Nos últimos dias tem-se visto professores se despedirem de suas alunas, dando a entender que será o fim de seus estudos. Portanto, é bem provável que a propaganda talibã de uma amenização das regras sobre as mulheres seja apenas uma forma de ilusão. E como ficará a questão dos refugiados? Encontrarão abrigo entre as nações que apoiaram o regime deposto ou serão negligenciados como foi grande parte de líbios e sírios que procuraram abrigo no Ocidente após suas nações se fragmentarem em guerras civis com a participação direta ou indireta de países do Ocidente?

Segundo a revista Veja de 11 de agosto de 2021: “Desde o início de 2021, 330.000 pessoas deixaram suas casas, em busca de refúgio nas cidades grandes e atravessando fronteiras (os afegãos formam o segundo maior contingente de refugiados do mundo, cerca de 3 milhões, atrás apenas dos sírios). Milhares de cidadãos que trabalharam para os Estados Unidos aguardam vistos para irem embora. Em redutos isolados, senhores da guerra que nunca prestaram contas ao governo armam milícias para proteger seus domínios da ressurreição do Talibã. No país pobre e despedaçado que duas superpotências não conseguiram controlar, um novo capítulo se inicia, sem nenhuma expectativa de melhora no horizonte”.

Sugestão de vídeos:

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/08/16/taliba-afeganistao-cabul.ghtml

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2021/08/16/afeganistao-taliba-territorios-ja-sob-controle.htm

https://www.opovo.com.br/noticias/mundo/2021/08/16/afeganistao-taliba-assume-governo-do-pais-entenda-o-conflito.html

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História

 

Figura:


https://www.google.com/search?sxsrf=ALeKk02jS_Ohk3BauPyQgZrNp7JjCOrz4A:1629142462425&source=univ&tbm=isch&q=imagens+de+cabul+hoje&sa


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