terça-feira, 31 de agosto de 2021

Nações esfaceladas 3: Líbia

 






O meu artigo a seguir, dando continuidade à minha série de artigos que chamei de “Nações Esfaceladas”, é sobre a Líbia.

A Líbia é um país do Magrebe, no norte da África, formado tradicionalmente por três regiões: Tripolitânia, Fanzânia e Cirenaica, sendo territorialmente o 17º país do mundo, com uma população de mais de seis milhões de habitantes e com capital em Trípoli. O país é rico em petróleo, sendo o décimo lugar no mundo em reservas deste produto.  A maioria dos trabalhadores líbios atua nos setores da indústria e de serviços e uma minoria na agricultura. Ainda existem mais de cem grupos de tribos e clãs na Líbia atual. Aproximadamente 97% da população líbia é de muçulmanos. A maioria é sunita.

Na Antiguidade, na parte mais perto do litoral e nos oásis foram criados núcleos de povoamento ligados aos fenícios e gregos. Os fenícios estiveram na Tripolitânia e na Cirenaica os gregos. Depois chegaram os romanos. Foram os gregos que deram o nome de Líbia àquela região no século II a .C. A população da Líbia atual tem, em sua maior parte, sua origem nos árabes e berberes. O império cartaginês , em seu período de expansão, formou uma província e no século I a.C os romanos se expandiram pela região. O império romano se instalou na Líbia nas províncias de Tripolitânia e Cirenaica e em 455 d. C os vândalos conquistaram essas províncias que foram anexadas ao Império Bizantino por volta do ano 533.

Nos tempos de domínio árabe, a Tripolitânia ficou por três séculos dominada pelo Califado Almóada e a Cirenaica estava sob domínio do Egito. O império turco otomano conquistou as duas regiões em 1551, mas o controle otomano estava muito mais na área próxima ao litoral. No século XVIII a dinastia árabe Karamanli dominou Trípoli e esse domínio durou por cerca de 120 anos, estendo sua influência pelas três regiões que compõe a Líbia, mas com uma ligação mais nominal que efetiva ao Império Otomano. Nessa época corsários estabeleceram bases em território líbio e as ações deles levaram a ataques da marinha dos Unidos na primeira metade do século XIX. Houve um fortalecimento do controle otomano em 1835, porém anos depois a confraria dos sanusis dominou Cirenaica e Fezã.

Houve uma guerra entre Itália e o Império Otomano em 1911, com uma invasão italiana à Líbia. O grupo religioso islâmico dos sanusis resistiu tenazmente aos italianos. O império turco desistiu da Líbia, assinando o Tratado de Lausana. Embora toda a Líbia estivesse ocupada por forças italianas em 1914, os sanusis ainda resistiam à penetração italiana no interior do país. Após a I Guerra Mundial os italianos recuperaram territórios que tinham perdido para os sanusis no período da Grande Guerra. Houve então a colonização italiana, com a construção de estradas e com o fornecimento de água para cidades, mas sem mudanças estruturais na economia.

A Líbia foi cenário de batalhas entre o Eixo e as forças do Reino Unido e seus aliados. Com a derrota de italianos e alemães, os britânicos passaram a governar a Cirenaica e a Tripolitânia, enquanto a França controlava Fezã. A Líbia conseguiu sua independência em 1952, passando a se chamar Reino Unido da Líbia. O rei escolhido foi o emir SaídeIdris Senussi, que passou a ser chamado de Idris I. A Líbia foi admitida na Liga Árabe em 1953 e em 1954 os Estados Unidos instalaram bases militares em território líbio. Havia fortes influências econômicas dos Estados Unidos e Inglaterra. Mas em 1959, com a descoberta de petróleo na Líbia , o governo da Líbia não quis mais autorizar a permanência de bases estrangeiras, o que não foi bem visto por ingleses e norte-americanos e nem pelo governo do Egito.

Em 1969 um grupo de oficiais nacionalistas e ideologicamente ligados ao pan-arabismo, entre eles Muamar Gaddafi, tomou o poder e extinguiu a monarquia. Foi instituída a República Árabe Popular e Socialista da Líbia, com as seguintes características: muçulmana, militarizada e de organização socialista.  Muamar Gadafi, passou a ser o chefe de Estado a partir de 1970, tendo expulsado os militares estrangeiros e nacionalizado empresas, bancos e a exploração de petróleo.

Foi feita uma união de interesses entre Líbia e Egito, com a criação da Confederação de Repúblicas Árabes, que terminou em 1979. Outra tentativa de união foi entre a Líbia e o Marrocos que durou de 1984 a 1986. Gaddafi quis fazer mudanças nas áreas cultural, política e econômica, criando o partido único União Socialista Árabe, fortalecendo as forças armadas líbias e chocando-se com os interesses dos Estados Unidos e Grã-Bretanha e também havendo um relacionamento tenso com alguns países árabes moderados. Em 1980 a Líbia invadiu o Chade.

A manutenção de poder por Gaddafi se deu graças a estratégias que ele teve em relação a tribos e etnias, distribuindo cargos importantes nas forças armadas a integrantes de tribos aliadas, havendo uma troca de favores entre o governo e essas tribos e afastando tribos que tinham ligação com o antigo rei. Gaddafi explorava em seu favor as rivalidades entre tribos e suprimia a participação de grupos berberes e tribos do leste. O grupo étnico do ditador era favorecido com bons cargos como também eram agraciados com cargos importantes membros de grandes tribos.

Nos anos de 1970 a Líbia incentivou parceiros árabes a não exportar para países que apoiavam Israel e Gaddafi foi contra o acordo de paz entre Egito e Israel, se alinhando com a Síria na “frente de resistência” em 1978 e apoiou as lutas da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), passando a dar colaborações financeiras para diversos grupos políticos armados estrangeiros. Nos anos 80 o governo líbio se aproximou da União Soviética e se colocou contra Israel e os Estados Unidos. Esse país estabeleceu um embargo às importações de petróleo da Líbia em 1982. O governo líbio foi acusado pelo governo Reagan de estar por trás de atentados terroristas e esse presidente ordenou em 1986 um ataque da força aérea norte-americana a alvos militares na Líbia.

A Líbia nos ano de 1980 estava em grande parte isolada diplomaticamente e para tirar o país dessa situação, Gaddafi procurou melhorar relações com países do Ocidente e com nações da vizinhança. Em 1991 o governo líbio foi contra a invasão do Kwait pelo Iraque e também criticou a posterior intervenção dos Estados Unidos na região. A pressão de Estados Unidos, França e Inglaterra continuava e esses governos exigiam que o governo de Gaddafi extraditasse dois líbios acusados de terem sido os responsáveis pela queda de um avião norte-americano na Escócia.

No início dos anos 90 a Líbia rompeu relações diplomática com o Irã. Em 1994 as tropas líbias saem do Chade e em 1995, descontente com a política palestina de tentar negociar com Israel, Gaddafi mandou expulsar 30 mil trabalhadores palestinos que estavam a trabalhar na Líbia. Apenas 1500 foram realmente expulsos. Em 1997 o governo líbio mandou executar seis oficiais declarados suspeitos de espionagem.

No início dos anos 2000 a Líbia recebeu milhares de refugiados vindos da Palestina, Sudão, Somália e Iraque que eram cerca de 16 mil em 2007. Milhares de imigrantes ilegais foram deportados.

Em fevereiro de 2011, as manifestações que ocorreram em países árabes, chamadas de “Primavera árabe”, atingiram a Líbia, indo contra o governo de Gadafi. Grande parte do país foi sacudido pelas manifestações. E em 27 de fevereiro foi formado o Governo Nacional de Transição para administrar as áreas tomadas pela oposição e para derrubar o governo do país. A França reconheceu politicamente a organização opositora e outros países a seguiram. Mas a oposição era inferior militarmente e foi cercada em Bengazi, cidade que era o centro da revolta. Em 17 de março de 2011 foi aprovada a Resolução 1973 pelo conselho de segurança das Nações Unidas e por meio dessa resolução podia ser estabelecida uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia. Em 19 de março aviões franceses apoiados por foças dos Estados Unidos atacaram posições militares do governo líbio. O Conselho Nacional de Transição foi reconhecido como novo governo líbio pela ONU. Em agosto os grupos opositores tomaram Trípoli.

Em Sirtre, onde Gaddafi e suas últimas tropas leais resistiam, houve a vitória da oposição e a morte do ditador após cerca de um mês de combates. Nessa guerra foram mortas mais de 30 mil pessoas. Foi criada então uma república parlamentarista. Mas o fim do Estado líbio controlado por Gaddafi provocou uma fragmentação política, com o ressurgimento de antigas tensões tribais e étnicas, assim como ressentimentos políticos entre os que apoiavam e os que não apoiavam o ditador. Durante o ano de 2011 mais de 500 mil líbios deixaram o país procurando refúgio em países vizinhos. No caso de milícias tuaregues, elas estavam muito armadas e não tendo mais certos benefícios que tinham com o regime anterior foram para o norte do Mali tentar formar um novo país, causando uma guerra com forças do governo de Mali.

Em 8 de agosto de 2012, após as eleições parlamentares que tinham sido em julho de 2012, o Conselho Nacional de Transição entregou oficialmente o poder para o  Congresso Geral Nacional , que deveria formar um governo interino e  elaborar uma nova Constituição. Mas a paz ainda não tinha sido alcançada e uma outra guerra civil começou. Nesse mesmo mês de agosto de 2012 duas mesquitas da orientação islâmica sufista foram destruídas. Em 11 de setembro de 2012 o embaixador dos Estados Unidos foi morto em um ataque terrorista ao consulado desse país na cidade de Bengasi. Em outubro saiu do poder o primeiro-ministro eleito da Líbia Mustafá Abushagur, não tendo conseguido aprovar um novo gabinete ministerial no parlamento. Assumiu em outubro de 2012 o advogado Ali Zeidam. Em 25 de março se iniciou o debate sobre a restauração da monarquia. Em 16 de maio desse ano o general líbio Khalifa Haftar (ex-alto oficial do exército de Gadafi, que tinha participado do golpe que derrubou do poder o rei, mas que nos anos de 1980 foi cooptado pela CIA e formou a ala militar da Frente Nacional para a Salvação da Líbia (LFD), para derrotar Gadafi e que não conseguindo o seu objetivo foi morar nos Estados Unidos em 1991, voltando em 2011 para lutar contra Gadafi), com suas tropas atacou Bengazi para atingir milícias presentes na cidade. Em 18 de maio o edifício do parlamento foi atacado por forças leais a Haftar. O general quis dissolver o Conselho Nacional Geral. Parte da população líbia demonstrou apoio a Haftar.

Na era pós- Gadafi, grupos ultra-conservadores ganharam força em vários lugares da Líbia. Em Derna, se fortaleceu o grupo líbio ligado ao Estado Islâmico atuante no Iraque. Também grupos extremistas se estabeleceram em Sirte e Bengazi. O principal grupo político líbio, a Aliança das Forças Nacionais, surgiu em 2012, após as eleições livres de 7 de julho de 2012. O Partido Justiça e Construção, com filiação à Irmandade Muçulmana, não apresentou a mesma força de seus semelhantes no Egito e Tunísia, mas conseguiu aliança com outros grupos políticos.

Cinco forças entraram em conflito pelo controle da Líbia desde que começou a Segunda Guerra Civil Líbia: 1-O governo da Câmara dos Representantes da Líbia, eleito em 2014 (o “governo de Tobruque), aliado ao Exército Nacional Líbio (ENL), comandado pelo general Khalifa Haftar, com apoio das forças aéreas do Egito e dos Emirados Árabes. Houve uma discordância entre o governo da Câmara e o Governo de Acordo Nacional (GNA) no verão de 2016, havendo um acirramento de tensões que levaram ao o avanço do ELN sobre Trípoli, base principal do GNA, em 2019. 2-O GNA: tomou posse em março de 2016 e foi formado na sequência do “Acordo Político Líbio” em 2015, com supervisão da ONU; 3-O governo do Novo Congresso Geral Nacional (NCGN), liderado pela Irmandade Muçulmana, com a sede em Trípoli, compondo uma coligação islâmica chamada Amanhecer Líbio, com apoios do Catar, Sudão e Turquia, uma força política que sofreu derrotas em 2017, com sua expulsão de Trípoli por tropas fieis ao GNA e então foi dissolvido; 4- O Conselho da Shura de Revolucionários de Bengazi, com a liderança da organização Ansaral-Sharia; 5-Estado Islâmico do Iraque e do Levante da Líbia.

Houve ocasiões que grupos de combatentes de um lado da guerra passaram para outro lado. As razões para o conflito eram a rivalidade econômica e a luta pelo poder. O presidente do Congresso tinha legalizado milícias islâmicas em Trípoli. Houve por parte de membros do Congresso a tentativa de estender irregularmente o mandato até dezembro de 2014, o que causou uma reação contrária de setores da sociedade líbia. As batalhas começaram em 16 de maio de 2014, ocasião que foi lançada a “Operação Dignidade” pelo general Khalifa Haftar contra grupos de Bengazi e do leste da Líbia. O general tentou dissolver o Congresso Nacional em Trípoli. Em 13 de julho de 2014 os grupos políticos islâmicos, não aceitando sua derrota eleitoral, começaram a Operação Amanhecer Líbio, buscando a tomada do aeroporto de Trípoli, conseguindo toma-lo em 23 de agosto. Houve ataques aéreos egípcios contra o Amanhecer Líbio e contra o Estado Islâmico.

Em 4 de agosto de 2014 foi criada a Câmara dos Representantes da Líbia. Mas o islamita Nouri Abusahmain, antigo presidente do Congresso Geral se recusou a uma transferência oficial de poderes para a Câmara, que inicialmente ficou neutra entre as forças que combatiam. Porém diante da tomada do aeroporto por milícias islâmicas, a Câmara chamou os grupos Amanhecer Líbio e o Conselho Shura de Bengazi de terroristas, o que provocou uma reação política dos líderes do Amanhecer Líbio, dando apoio ao Congresso Geral. E em Bangasi houve discordâncias entre islamitas moderados e os radicais. Nessa guerra, combatentes estrangeiros se colocavam ao lado de grupos que estavam em conflito.

A guerra entre diversos grupos continuou pelo ano de 2014. Em 6 de novembro foi declarada inconstitucional a Câmara dos Representantes pela Suprema Corte da Líbia. Mas a Câmara continuou funcionando. Em 16 de janeiro de 2015 foi acordado um cessar-fogo entre os líderes da Operação Dignidade e os do Amanhecer Líbio. Foi acertado por essas partes que seria formado um governo de unidade. No início de 2015 o Estado Islâmico realizou atividades armadas e guerrilheiros chegaram a tomar o controle do campo petrolífero de Al-Mabrook e assumiram posições na cidade de Sirte. Houve assassinato de cristãos coptas vindos do Egito e esse reagiu bombardeando bases do Estado Islâmico em Derna. O Estado Islâmico no início de 2015 lançou ataques com carros- bomba a cidades líbias. Passou a combater forças liberais, islamitas e jihadistas. Em 17 de dezembro de 2015 foi assinado por grupos políticos um acordo para formar um governo interino.

A guerra civil causou muitos prejuízos materiais e desordem, com frequentes quedas de energia e redução da atividade econômica. Além dos milhares de mortes, há muitos deslocamentos de pessoas para fora da Líbia, procurando condições melhores de vida. Vários países se envolveram na Segunda Guerra Civil Líbia: A Rússia, por interesses comerciais, políticos e geoestratégicos. Sua presença na Líbia pretende enfraquecer a influência da OTAN. Os Estados Unidos não querem perder influência na região e não gostam de ver a Rússia se metendo na Líbia, inclusive o governo norte-americano já se manifestou contra a presença de tropas russas. A Turquia, que enviou soldados para lutar na Líbia, quer reduzir o poder do Egito e Emirados Árabes na região e também tem interesses econômicos. Países europeus temem que a Líbia possa ser uma “segunda Síria”, desejam que não aumentem as ondas migratórias e querem evitar ameaças terroristas a partir do território líbio. E outros países também tem interesses na região como Egito, Emirados Árabes Unidos, Catar, Arábia Saudita, Argélia, por motivos políticos, estratégicos, ideológicos etc.

O Governo do Acordo Nacional da Líbia (GNA), comandado por Fayezal-Sarraj, reconhecido internacionalmente e o Exército Nacional Líbio (LNA), liderado pelo general Khalifa Hafter assinaram um acordo de cessar fogo permanente em 23 de outubro de 2020. E em 21 de fevereiro de 2021, houve uma reunião, com a mediação da ONU em Genebra, na Suíça, com a presença de delegados líbios. Foi escolhido Abdelhamid Dbeibah como primeiro ministro para formar um governo de unidade nacional. Ele deverá liderar a transição até a posse de um governo a ser eleito em 24 de dezembro de 2021.

Na guerra civil as duas principais partes envolvidas foram o Parlamento de Tobruk, aliado do general Hafter e apoiado por Rússia, França, Emirados Árabes, Egito, Arábia Saudita etc e o GNA, com o apoio de países como os EUA, Reino Unido e Turquia. Que estas partes respeitem o acordo firmado para que possa haver uma união nacional na Líbia e haja mais chances de se obter a paz.

 

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História


Fonte:

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