segunda-feira, 21 de março de 2022

Dia Mundial da Poesia e poesias de poetas paraenses

 









Considerando-se esta data, estou destacando poetas paraenses, colocando aqui uma poesia de cada autor (a).

 

ANTÔNIO MOURA

 

 

Tanto quanto

*

Um tanto de mentira, um quanto de verdade, assim

vai se erguendo o mito, teia entretecida com os fios

da vida e da irrealidade, boca a boca, ouvido a ouvido
e algumas manchas de escrito, assim vai-se fazendo
do finito, infinito  —  uma palavra e um caminho que
sem se salvar do tempo consegue escapar do olvido, vida
e arte entrelaçadas em grandes travessias de oceanos,
pequenos barcos por furos dentro das matas, algumas
visões extraordinárias, muito de banal e cotidiano, e
no meio da vegetação emaranhada, no centro da clareira
borbulha o caldeirão da feiticeira, o aroma do amor, suas
especiarias misturadas ao odor azedo da dor  —  gordura fria
e fundidos no ar o olor das flores e o odor das fezes,
nuvens saindo dos olhos dos demônios e dos deuses
para chover e forjar o humano jardim que floresce
e apodrece, floresce, apodrece, floresce, apodrece,
floresta queimando num tempo tenebroso em que os uivos
dos famintos e refugiados ecoam pelos cômodos das casas
e em contraponto reverberam sobre o silencio que cobre
os corpos mortos dos nossos vizinhos índios, pretos, pobres,
almas vagando pelos cômodos cômodos de nossas casas,
ecos incômodos pelos cômodos cômodos de nossas casas.
A página escurece, o estrondo de um meteoro soa na sala
e entre os astros e o desastre ergue-se o rumor do mito,
a doce mentira, o sal da verdade, a vida, a arte  —  o grito

 

 

  

AIRTON SOUZA

 

na rua dois meninos
com línguas de atravessar dilúvios
sulcam alguma calamidade do chão
[ como quem limpam ossos
sem pensar nas dores dos donos ]
na tentativa de desanoitecer a infância

mesmo que esses dois meninos
conduzissem um índico inteiro nos olhos
ainda seriam pequenos para compreenderem
os órfãos que sonham todas as noites
com um inventário dos pais
& os epílogos de chãos sem túmulos

só os órfãos sabem
que não basta internalizar razões ou rostos
lavrar a carne depois da igreja vazia
é preciso redesenhar as tragédias
do mar sem porto ou margens. 

 

 

 

PAULO NUNES

 

Do Pão

“...Minas é uma fotografia na parede, mas como dói...”
(Carlos Drummond de Andrade)
“Belém é um pequiá suculento...” (Dalcídio Jurandir)

Para Maria de Belém Menezes e Maria do Céu De Campos Jordy

És casa, sim e me desvelas
à beira do teu abismo.
És casa, fui e voltei,
Sinal afoito de um reparo no assoalho
(tábua amarela e preta):
fruto da mangueira e o paneiro para pegá-la.

Obturas, casa, sem eira nem beira,
os ontens meus,
Arsenal, sinais da vacaria,
Hospital onde nasci,
o Recreio da Armada
sob auspícios do Paco,
Hoje, fincamos nossa nau no bar do Bacu
para beijar o luar.

Casa combalida, tresoitada,
Malacabada fome, mofina de arquiteturas
banguelas.
Se me convertes no teu rio
eu te assovio, barro sobre sabre,
bairro do Umarizal dos pretos e
nem mais aquela flâmula encarnada
na esquina.
Não à vela de Nossa Senhora das Candeias
na janela da casa de palha
Não ao batuque de Ogum-Jorge, mestre de meu pai,
Lança e poder de me nominar.

Cidade, és o banho de cheiro
de minha avó vinda de longe, o Marajó.
És a “tienda” da outra, a das castanholas.
Cidade: pés, sovela e a agulha
de meu avô, o sapateiro.
Ainda guardas os envelopes de papel de cheiro
do Pará da tia que cruzava tuas esquinas?
A máquina Singer da mãe ainda tramela
seus moldes e bainhas numa rua tua, fantasma.

Casa, se não tens mais castanheiras
em teus brincos já não circundo o igarapé
que fora teu, esconderijo das armas, das Almas,
hoje podre aroma de ricos, salvos pela frescor da Phebo.

Cidade,
casa de meu cômodo,
arraial de meus incômodos, Belém, o osso buco de roer.

 

MAYARA LA-ROCQUE

 

Lâmina

Dizem que tudo começa na infância
O raio
O espectro
A ave
O cedro

A órbita do tempo
se revira nas minhocas
soterradas no estrume

Canta um galo
ao longe
E no ouvido
freme um zumbido
de aurora

Enquanto homens e mulheres
acimentam o chão,
eu lavro uma terra
esquecida

Não sigo os lampejos
as latarias
o trânsito
e os sinais
do mês de dezembro

O sino que toca é outro
Poucos podem ouvir
Porque está além
do cimo das igrejas

ele toca nas quinas
na curva metálica
da janela
sobreaquecendo
ao sol

onde seca o orvalho
nasce sempre
outro tempo

A cada manhã
tem uma lâmina
afiada
Queimando
Evaporando
A água
A sede
– sempre a última gota –
Que tu trazes na memória. 

 

 

 

GABRIELA SOBRAL

CORTINA

Os historiadores não saem na linha de pagamento
Precisa-se de arqueólogos
Função: esqueletar a besta
Ela é grande e sorri
Taxionomia: de bem
Os cadernos passam rápidos sobre ela
destroem sua materialidade
a carbonizam
O objetivo?
fumaça
Somos testemunhas de seus restos
eles falarão sobre nós
E a vida continua. 

 

VASCO CAVALCANTE

Leve-me então
ao improvável

à palavra muda

o estampido tácito,
o ar ausente, leve-me

aos espasmos da noite
aos anseios do sêmen

aos delírios

leve-me ao vazio,

mas

— deixe-me!

uma fresta, um lampejo de luz
algumas letras soltas

um verbo apenas,

então...

— gênese

 

 

Rui Barata

Helena


Da tristeza e da alegria
Somente Helena sabia,
Sabia porque sabia
do bordel à Eucaristia.
Sabia porque sabia
que a noite clareia o dia.
De tantas e tontas coisas
Sabia Helena sabia.
Regando seus muitos sonhos
penteando a maresia
lavando léguas de lodo
no limbo da poesia.
E assim costurava o caos
com a linha da fantasia
a nossa helena dos bares
aquela que mais sabia
que sabendo se lembrava
e lembrando se esquecia

 

PAULO PLÍNIO ABREU (1921-1959)

Elegia


Por que de estranhas terras eu te acompanho lua solitária
E durmo ouvindo os teus passos de anjo pela noite
Quando os velhos desejos desaparecidos voltam à flor das ondas
E a noite do exílio levanta as suas árvores de sonho,
De um tempo imemorial eu acompanho as tuas viagens,
Tu que vestes os mortos com o que cai do coração dos vivos
Eu te acompanho pelo céu escuro
Sentindo como tua a vertigem da morte que anuncias.
Tu que de um tempo longo ergues teus olhos sobre o tempo
E apenas náufragos aportam a esse país estranho em que tu vives
Ouço tua voz cair no mar da madrugada
Para que o céu se deite sobre ti como um sepulcro
E as estrelas brilhem nesta noite como incêndio

 

MAX MARTINS

 

VER-O-PESO


A canoa traz o homem
a canoa traz o peixe
a canoa tem um nome
no mercado deixa o peixe
no mercado encontra a fome
a balança pesa o peixe
a balança pesa o homem
a balança pesa a fome
a balança vende o homem
vende o peixe
vende a fome

vende e come

 

a fome
vem de longe
nas canoas
ver o peso
come o peixe
o peixe come
- o homem?


 

 

o homem não come
come o homem
compra o peixe
compra a fome
vende o nome
vende o peso
- peso de ferro
- homem de barro

 

pese o peixe
pese o homem
é a fome
vem do barro
vem da febre
(a febre vê o homem)

 

veja a lama
veja o barro
veja a pança
o homem
come a lama
lambe o barro

 

ver o verde
ver o verme
o verme é verde
está na lama
está na alma
é só escama
a pele do homem
está com fome
vê o peixe
vê o prato
não tem peixe
tem fome
a fome pesa
o peso da fome
peça por peça
pese o peixe
deixe o peixe
veja o peso
peixe é vida
peso é morte
homem é fome
peso da morte
peixe de morte
a sorte do peixe
é o peso
azar do homem
pese o peixe
pese o homem
o peixe é preso
o homem está preso
presa da fome

 

ver o peixe
ver o homem
vera morte
vero peso.

 

 

JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO

Cantigas de amor de amor e de paz.  Belém, PA: Editora Equipe, Gráfica Globo, 1966.  Livro inconsútil, folhas soltas. 

        
         (fragmento)

         ferem-se invernos
         ferem- verões
         ferem-se infernos
         ferem-se varões

                   pilotagens de sonho
                   a estibordo

                   eu te instituo
                     amor
                  o meu preposto
                   neste processo
                      amor
                   o meu repasto
                   neste réu pasto
                      amor
                   este meu fausto
                   de muito demais amar
                   megaloamando

 

Bruno de Menezes

Filmando

Ó figurinha de cinema!
Passaste,
em ondas de "organdy",
esvoaçante e serpentina.
Os braços nus, em gestos de haste,
a boca rubra e tão pequena
que nunca vi
mais pequenina.

Meu jarro ideal de Becerril...

E o teu olhar...
Ó minha "girl", loura e risonha!
Queres um rei? Sou Boabdil!...
Dou-te um riquíssimo alcaçar,
dou-te a Avenida do Bolonha!

 

Antonio Tavernard.

 

GERMINAL

Tardes cheias de sol...
Fêmeas cheias de cio...

Escachoo de sangues e de seivas
Fecundações de ventres e de leivas...

Estio!... Estio!...

Tardes cheias de sol...
Fêmeas cheias de cio...

Puberdade do tempo, a primavera
deixa a terra mulher...

Primavera da vida, a puberdade
deixa a mulher em flor...

Por fim, chega o verão...
Dá-se a posse infinita...
O mundo lembra um leito que se agita...
No sussurro do vento há soluços de amor...

Vem a espiga depois, e vem o filho...
Folhas sem cor...
Olhos sem brilho...

A vertigem passou, com as esperanças,
de si deixando, pelas manhãs claras:
como searas soltas, as crianças,
como crianças presas, as searas...

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Márcio José Matos Rodrigues

 

 

 Figura: https://www.google.com/search?q=imagem+do+dia+mundial+da+poesia&sxsrf=APq-WBs6RM-PiS2aVvCiXgBT0s37O_uxpQ:1647917773243&tbm=isch&source=


 


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