domingo, 7 de março de 2021

Homenagem ao Dia Internacional da Mulher: Poetisas Brasileiras e Portuguesas

 




Como uma primeira homenagem ao Dia Internacional da Mulher escolhi poemas de algumas poetisas ou mulheres que são poetas (como Cecília Meireles preferia) brasileiras e portuguesas para esta primeira publicação de 2021 no Blog do MJ Rodrigues em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. Posteriormente ainda em março pretendo fazer novas postagens alusivas a esta data especial.

 

 

AS BRASILEIRAS:

 

1)    Cecília Meireles

Reinvenção

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Lua Adversa

Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Canção de Outono

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando aqueles
que não se levantarão...

Tu és folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

 

Soneto Antigo

Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.

 

2)    Hilda-hilst

 

Amavisse

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.   

Dez chamamentos ao amigo

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Passeio

De um exílio passado entre a montanha e a ilha
Vendo o não ser da rocha e a extensão da praia.
De um esperar contínuo de navios e quilhas
Revendo a morte e o nascimento de umas vagas.
De assim tocar as coisas minuciosa e lenta
E nem mesmo na dor chegar a compreendê-las.
De saber o cavalo na montanha. E reclusa
Traduzir a dimensão aérea do seu flanco.
De amar como quem morre o que se fez poeta
E entender tão pouco seu corpo sob a pedra.
E de ter visto um dia uma criança velha
Cantando uma canção, desesperando,
É que não sei de mim. Corpo de terra.

 

 Porque há desejo em mim

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada

 

3-Cora Coralina

Aninha e Suas Pedras

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Becos de Goiás

Becos da minha terra...
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de sol que ao meio-dia desce fugidia,
e semeias polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha, jogada no monturo.

Amo a prantina silenciosa do teu fio de água,
Descendo de quintais escusos sem pressa,
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano.
Amo a avenca delicada que renasce
Na frincha de teus muros empenados,
e a plantinha desvalida de caule mole
que se defende, viceja e floresce
no agasalho de tua sombra úmida e calada

Meu Destino

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida…
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida…

 

4-Adélia Prado

Amor Violeta

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.

Pranto Para Comover Jonathan

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

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Estou atrás
do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra.

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Fagulha


Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

 

5-Ana Cristina Cesar

Flores do mais

Devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais


 

Poesia


jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência freqüentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta

 

6- Alice Ruiz

Ninguém me canta
como você
ninguém me encanta
como você
nem me vê
do jeito
que só você
de que adianta
ter olhos
e não saber ver
ter voz
mas não ter o que dizer
digam o que disserem
façam o que quiserem
ninguém diz
ninguém vê
ninguém faz
como você
ninguém me canta
ninguém me encanta
como você.

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Que o breve
seja de um longo pensar

Que o longo
seja de um curto sentir

Que tudo seja leve
de tal forma
que o tempo nunca leve.

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Pode haver um dia
em que a poesia
mude de endereço
deixe apenas tédio

mas enquanto isso
vem brincar comigo
vamos até onde
possa ser só riso
possa ir tão longe
possa ser tão lindo
pode ser brinquedo
pode ser tão sério

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Milágrimas


Em caso de dor, ponha gelo, mude o corte de cabelo
mude como o modelo
vá ao cinema, dê um sorriso, ainda que amarelo
esqueça seu cotovelo
se amargo for já ter sido, troque já esse vestido
troque o padrão do tecido
saia do sério, deixe os critérios, siga todos os sentidos
faça fazer sentido
a cada mil lágrimas sai um milagre
caso de tristeza, vire a mesa, coma só a sobremesa
coma somente a cereja
jogue para cima, faça cena, cante as rimas de um poema
sofra apenas, viva apenas
sendo só fissura, ou loucura, quem sabe casando cura
ninguém sabe o que procura
faça uma novena, reze um terço, caia fora do contexto
invente seu endereço
a cada milágrimas sai um milagre
mas se, apesar de banal,
chorar for inevitável
sinta o gosto do sal, do sal, do sal
sinta o gosto do sal
gota a gota, uma a uma
duas, três, dez, cem, mil lágrimas
sinta o milagre
a cada mil lágrimas sai um milagre
a cada milagrimas.

 

7-Gilka-machado

Ser mulher…

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada

para os gozos da vida, a liberdade e o amor;

tentar da glória a etérea e altívola escalada,

na eterna aspiração de um sonho superior…


Ser mulher, desejar outra alma pura e alada

para poder, com ela, o infinito transpor;

sentir a vida triste, insípida, isolada,

buscar um companheiro e encontrar um Senhor…


Ser mulher, calcular todo o infinito curto

para a larga expansão do desejado surto,

no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…


Ser mulher, e oh! Atroz, tantálica tristeza!

ficar na vida qual uma águia inerte, presa

nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

 

  

Ânsia múltipla

Beija-me Amor,

beija-me sempre e mais e muito mais,

– em minha boca esperam outras bocas

os beijos deliciosos que me dás!


Beija-me ainda,

ainda mais!

Em mim sempre acharás

à tua vinda

ternuras virginais.


Beija-me mais, põe o mais cálido calor

nos beijos que me deres,

pois viva em mim a alma de todas as mulheres

que morreram sem amor!…

 

Há lá por fora
um luar
que é um divino pecado…
se viesses, meu amado,
se surgisses agora
ao meu olhar,
se me apertasses, trêmula de susto,
ao teu formoso busto…

Paira lá fora o luar
a tentar a paisagem,
as almas a tentar;
se viesses, meu selvagem,
com teu querer imperativo e rudo,
com teus modos brutais,
a esta lua macia,
eu tudo
te daria
e mais
e muito mais!…

 

Que seria de mim,
deste meu pobre amor, ai que seria,
se houvesse, noite a noite, um luar assim?
Repara o encantamento
da dor a que te exponho e a que me imponho,
neste mútuo querer de intérmino adiamento.
Gozemos ambos o prazer tristonho,
a ventura dolorida
de prolongar o sonho, que há no sonho
A realidade mais feliz da vida.

A lua desce numa poeira fina,
que os seres todos alucina,
que não sei bem se é cocaína
ou luar…

Fosse eu agora para a rua,
assim, tonta de lua…

Não é noite, nem dia.
Observo, com surpresa,
em toda a natureza
uma triste alegria.
Repara bem que paradoxo no ar,
que dolorosa orgia
em que a alma peca com vontade de chorar!

O meu amor por ti é uma noite de lua,
em que há quanto prazer, em que há tortura quanta,
Em que a alegria chora e a tristeza canta,
Em que, sem te possuir, sou toda tua…

 

O meu amor por ti é uma noite de lua,
misto de ódio e paixão com que repilo e quero
todo o teu ser de modo mais sincero,
fugindo-te e sonhando, a cada instante,
Palpitante
de gozo
meu corpo amado e amante.

Fosse eu agora para a rua…
Vagabundeia o luar tentando as cousas todas
para prolongamentos, para bodas…

 

Se chegasses, num lírico transporte,
Se chegasses, meu servo e meu senhor,
A vida que valerá e que valerá a morte,
Diante do nosso amor?

 

Ao teu abraço cálido e nervoso,
O etéreo tóxico entorpecente,
pela janela,
chega-me à boca, meus lábios gela…
Que frio ardente!
Embrulho-me num manto, olho o espelho: estou nua.
A alma fora de mim, zombando dos refolhos
em que me abrigo.
A alma a fugir-me pelos olhos,
ébria de pó de lua.

 

Sangrando luz, pendida a trança flava,
uma estrela do além se despenhava…
— Sorriste olhando-a, entristeci-me em vê-la…

Com a alma em fogo, pela noite fria,
em vertigens de amor eu me sentia
rolar no abismo como aquela estrela…

  

Saudades

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?

De quem é esta saudade,
de quem?

Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...

E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...

De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?

 

8-Claudia-Roquette-Pinto

 

Sítio

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopeia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
— mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda 
ter virado o rosto: — Pai! 
acho que um bicho me mordeu!  assim 
que a bala varou sua cabeça?

 

Chama

as tulipas acenderam
— espadas, coroas,
cabelos —
seu ruído no quarto
na cama sem repouso
um rosto avesso ao rosto
intransigente, do espelho,
busca equilíbrio
sobre o cânion dos lençóis
paira, fogo contido,
gêmeo do incêndio das flores
ardendo em contínuo
silêncio,

no halo da lucidez

 

 Vão 

palavra-persiana

poema-lucidez

imanta o ar fora do cômodo

das frases              um outono

rente à janela

ouro tonto sobre a tarde derrubada

entrementes, entre dentes

(e quatro paredes)

tua boca ainda invoca

equívoca e pobre.

na penugem além da vidraça

os deuses-de-tudo-o-que-importa

cerram as pálpebras de cobre

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O dia inteiro perseguindo uma ideia:
vaga-lumes tontos contra a teia
das especulações, e nenhuma
floração, nem ao menos
um botão incipiente
no recorte da janela
empresta foco ao hipotético jardim.
Longe daqui, de mim
(mais para dentro)
desço no poço de silêncio
que em gerúndio vara madrugadas
ora branco (como lábios de espanto)
ora negro (como cego, como
medo atado à garganta)
segura apenas por um fio, frágil e físsil,
ínfimo ao infinito,
mínimo onde o superlativo esbarra
e é tudo de que disponho
até dispensar o sonho de um chão provável
até que meus pés se cravem
no rosto desta última flor.

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AS PORTUGUESAS:

 

1-Florbela Espanca:

 

Angústia

Tortura do pensar! Triste lamento!

Quem nos dera calar a tua voz!

Quem nos dera cá dentro, muito a sós,

Estrangular a hidra num momento!

E não se quer pensar! ... e o pensamento

Sempre a morder-nos bem, dentro de nós ...

Querer apagar no céu – ó sonho atroz! –

O brilho duma estrela, com o vento! ...

E não se apaga, não ... nada se apaga!

Vem sempre rastejando como a vaga ...

Vem sempre perguntando: “O que te resta? ...”

Ah! não ser mais que o vago, o infinito!

Ser pedaço de gelo, ser granito,

Ser rugido de tigre na floresta!

 

 

De joelhos

“Bendita seja a Mãe que te gerou.”

Bendito o leite que te fez crescer

Bendito o berço aonde te embalou

A tua ama, pra te adormecer!

Bendita essa canção que acalentou

Da tua vida o doce alvorecer ...

Bendita seja a Lua, que inundou

De luz, a Terra, só para te ver ...

Benditos sejam todos que te amarem,

As que em volta de ti ajoelharem

Numa grande paixão fervente e louca!

E se mais que eu, um dia, te quiser

Alguém, bendita seja essa Mulher,

Bendito seja o beijo dessa boca!!

 

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho,e desta sorte

Sou a crucificada … a dolorida …

Sombra de névoa tênue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!…

Sou aquela que passa e ninguém vê…

Sou a que chamam triste sem o ser…

Sou a que chora sem saber porquê…

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver,

E que nunca na vida me encontrou!

 

 

Fanatismo

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."

 

 

2- Maria Teresa Horta

 

 Joelho


Ponho um beijo
demorado
no topo do teu joelho

Desço-te a perna
arrastando
a saliva pelo meio

Onde a língua
segue o trilho
até onde vai o beijo

Não há nada
que disfarce
de ti aquilo que vejo

Em torno um mar
tão revolto
no cume o cimo do tempo

E os lençóis desalinhados
como se fosse
de vento

Volto então ao teu
joelho
entreabrindo-te as pernas

Deixando a boca
faminta
seguir o desejo nelas.


Quotidiano


Tu permites que eu vá

mas também me reténs

tentando seguir a minha falta

 

Imaginava que fujo enquanto me tens

e supões-me estar perto

quando afinal já parto

 

Tu ficas atento, inventas passagens

contas pelos dedos

tudo aquilo que faço

 

E quando me disfarço fechas os olhos

àquilo que importa

Finges que não sabes

abres a janela e trancas-me a porta

 


Sem pressa

Jamais apresso nada

no amor

Gosto que dure mais

a cada hora

 

Ter e esquecê-lo

recusá-lo e inventá-lo

fora

 

Jamais empurro nada

no amor

Ontem como foi

muito melhor agora

 

Desdizê-lo e desejá-lo

a cada passo,

fazê-lo deitar comigo e possuí-lo

Atá-lo ao meu corpo num abraço

 

 Fogo

 

Despe-me o vestido

pela cabeça

até ao cimo da nudez

e ainda

desce mais as mãos pelo meu corpo

 

Apaga esse fogo

que absorto

me consome devagar até a cinza

 

 

 

 3- Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Pirata

Sou o único homem a bordo do meu barco.

Os outros são monstros que não falam,

Tigres e ursos que amarrei aos remos,

E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros

E de me abrir na brisa com as velas,

E há momentos que são quase esquecimento

Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,

A minha amada é onde os roseirais dão flor,

O meu desejo é o rastro que ficou das aves,

E nunca acordo deste sonho e nunca durmo

.

4- Vóny Ferreira  Mátria

Triste fado

Enfeito-me de sonhos cristalinos

Com as cores de um cândido anseio

Afundo os meus olhos cerrados

Nas águas turvas, onde me deito.

É ao fugir de mim, que permaneço

Numa quietude de andorinha,

Que procura o seu ninho...

Como se andasse perdida.

Quem traçou o meu destino?

Desconheço porque me devoro

Com a sôfrega eloquência

De quem se auto mutila!!!

Que tristeza me apedreja?

Não quero que ninguém me veja

Nem que alguém me encontre

enquanto andar perdida...

É o escuro que me ilumina!

Acaso pedi guarida?

Cansei de me procurar

assim... como quem tropeça

num lamaçal escorregadio

Nunca deixarei de sonhar...

É esse o meu triste fado!

 

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Sugestão de vídeos:

Hilda-hilst

https://www.youtube.com/watch?v=Ctm2LKvOP9M&t=10s

 

Claúdia Roquete Pinto

Saudade

https://www.youtube.com/watch?v=aFxi46ckc-g

O Dia Inteiro

https://www.youtube.com/watch?v=80Yov6fhknA-

 

Vóny Ferreira

 

Triste Fado

https://www.youtube.com/watch?v=Xpi7O_g4X3I&lc=Ugwc17kmin8GXwyPCtV4AaABAg

 

 

Gilka-machado

 Milágrima

 

https://www.youtube.com/watch?v=Dxg3TOPzBro&t=2s

 

Fanatismo- Poema de Florbela Espanca

Canta Fagner

https://www.letras.mus.br/fagner/45922/

_________________________________________

Márcio José Matos Rodrigues

 

 

Figura: https://www.google.com/search?q=imagem+de+rosas&client=firefox-b-d&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=0-


 


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