quarta-feira, 22 de junho de 2022

O Holodomor: A Fome mortal na Ucrânia dos anos 30 no século XX

 








No início da década de 30 do século XX houve na Ucrânia o Holodomor. Traduzindo para o português, quer dizer “deixar morrer de fome” ou “assassinato por fome” (“holod”, significa fome, e “mor”,significa praga ou morte). Para certos estudiosos foi uma calamidade, mas para outros tratou-se de uma política deliberada do ditador soviético Stalin entre 1931 e 1933 contra a população ucraniana por motivos políticos, uma forma de extermínio, ou seja, um tipo de genocídio. Uma corrente de pesquisadores afirma que houve intenção do governo de Stalin de destruir a "identidade nacional ucraniana".Nesse período, entre 3 a 8 milhões de ucranianos morreram devido à fome causada pela política stalinista da época.  Alguns analistas consideram que, se forem considerados os efeitos prolongados de todas as ações duríssimas do Estado sob o comando de Stalin, o número de ucranianos mortos pode ter chegado aos 14 milhões.

Os antecedentes do Holodomor estão relacionados ao tipo de políticas econômicas de Stalin desde 1928. Stalin pretendia controlar a produção de cereais na União Soviética, fazendo uma “requisição compulsória”, forçando os camponeses a entregar a preços baixos para o Estado grande parte do excedente agrícola que tinham produzido. Também houve a coletivização forçada das propriedades agrícolas, com administração racionalizada pelo Estado soviético. Nesse contexto, a Ucrânia mostrou forte resistência e alimentava um sentimento nacional que não estava de acordo com a vontade do governo soviético que tinha considerável influência da maior república, que era a Rússia. Tal atitude ucraniana de não aceitar suas políticas para o campo instigou Stalin a tomar medidas mais rígidas em relação à Ucrânia.

Houve por parte do governo liderado por Stalin uma campanha para vencer a resistência ucraniana às políticas do Estado soviético. Intelectuais ucranianos foram perseguidos e humilhados. Focos considerados de rebeldia contra o governo soviético foram atacados. E o próprio campesinato foi atingido pelas medidas duras de Stalin.

Começou em 1929 uma intensa programação de metas de produção de cereais para serem encaminhados ao poder central. As exigências eram muito severas e os camponeses só conseguiriam atende-las se deixassem de consumir o que era necessário para não passarem fome.  Houve prisões e condenações a trabalhos forçados por atos do campesinato como, por exemplo, comer batatas ou colher o milho para o próprio consumo. As mortes foram aumentando devido à fome. Os cadáveres se espalhavam pelas ruas e pelo campo.  Segundo o historiador Thomas Woods:

Em 1933, Stalin estipulou uma nova meta de produção e coleta, a qual deveria ser executada por uma Ucrânia que estava agora à beira da mortandade em massa por causa da fome, que havia começado em março daquele ano. Vou poupar o leitor das descrições mais gráficas do que aconteceu a partir daqui. Mas os cadáveres estavam por todos os lados e o forte odor da morte pairava pesadamente sobre o ar. Casos de insanidade, e até mesmo de canibalismo, estão bem documentados.” (Woods, Thomas. A fome na Ucrânia – um dos maiores crimes do estado foi esquecido. Instituto Mises Brasil.)

Josef Stalin, que governava a União Soviética desde a morte de Lenin em 1924, implementou o Primeiro Plano Quinquenal visando implementar um grande processo de modernização nacional. Com a imposição em todo o território soviético da coletivização da agricultura privada, esperava-se aumentar a produção e assim poder vender os excedentes agrícolas para outros países. Essa venda ajudaria a conseguir recursos para um processo de industrialização. Os donos de terras que se recusassem a cooperar seriam acusados de serem inimigos do Estado. Os maiores proprietários rurais eram chamados de kulaks. Mas com o tempo, pequenos proprietários foram também incluídos nessa categoria. Os donos de terras tinham de deixar suas propriedades para o Estado. Se resistissem, as famílias desses proprietários seriam tiradas á força das terras que ocupavam e envidas para outros lugares, muitas vezes sem boas condições de sobrevivência.  Intelectuais e religiosos considerados contrários à politica de Stalin seriam também deportados como forma de punição.  Muitos camponeses empobrecidos foram para as cidades. Em 1930 a Ucrânia se destacava nas suas colheitas, tendo produzido 1/3 do trigo da União Soviética (URSS). Devido à insuficiência de recursos obtidos no campo em diversas áreas da URSS, o governo central mandou confiscar quase metade da produção agrícola ucraniana de 1930.

Além da questão econômica existia a questão política. Conforme historiadores ucranianos, o governo stalinista desconfiava dos ucranianos e em sua análise os mesmos desejavam sua independência desde os anos 20, indo eles contra a ideia da Ucrânia como parte da URSS. Dessa forma, o governo soviético esperava enfraquecer muito essas aspirações nacionalistas e fortalecer a integração da Ucrânia na URSS. Para esses estudiosos, a posição política do governo de Stalin teve grande influência no Holodomor como uma maneira de submeter a Ucrânia. A maioria dos camponeses ucranianos não concordou com a política de coletivização. O Estado soviético, cujo controle estava nas mãos de Stalin, forçou os camponeses ucranianos a entregarem suas terras, gado e ferramentas agrícolas e os mandou trabalhar em fazendas coletivas.

Os ucranianos, em 1932, que estavam sujeitos ao planejamento rígido central tiveram a situação agravada por condições duras do clima, a existência de pragas, a necessidade de mais equipamentos para a colheita e a desmotivação dos camponeses em participar das fazendas coletivas. Diante disso, não houve apoio do governo central soviético e sim um aumento das exigências de cumprimento de metas mensais. Se uma pessoa fosse pega tirando comida para fora das áreas produtivas, seria presa. Ninguém poderia ter seu estoque pessoal de comida. Conforme pesquisadores, aldeias inteiras foram dizimadas e, em algumas regiões, a taxa de mortalidade pode ter alcançado um percentual de 30%.

As dificuldades enfrentadas pelos ucranianos levaram, no início de 1933, a uma rebelião que se espalhou, havendo sabotagem da produção. A reação do governo stalinista foi uma brutal repressão, com a prisão de cem mil pessoas que foram enviadas para campos de trabalhos forçados, os gulags. Por volta da metade desse ano, cerca de 30 mil ucranianos morriam por dia. A fome era tanta que ocorreram casos de canibalismo. Diante de atos de resistência, milícias a serviço do governo soviético iam até as e levaram tudo o que era comestível. Quando a fome estava no auge, autoridades soviéticas fecharam as fronteiras para que camponeses não fugissem para outros países.

O fim do Holodomor, após milhões de mortos, se deu com ajustes no programa de coletivização da agricultura. Segundo Simon Starrow, um professor ucraniano que viveu nos Estados Unidos e que usou o pseudônimo de Miron Dolot: “No fim de maio de 1933, a fome amainou. Acabou a inanição em massa. Verduras e frutas estavam disponíveis em abundância para todos que fossem capazes de sair e procurar por eles. Além disso, as autoridades precisavam de trabalhadores para as fazendas e elas não tinham outra escolha senão a de fornecer aos membros que trabalhavam no kolhosp rações alimentares suficientes para sustentar sua existência”.

Foi aprovada na Ucrânia em 2006 uma lei reconhecendo o Holodomor como uma ação genocida. Vinte países acompanharam esse reconhecimento. Mas a ONU não se pronunciou oficialmente sobre a questão. O governo russo nunca reconheceu que tenha acontecido um genocídio. Uma versão do governo russo foi de que os ucranianos estariam tendo uma “interpretação nacionalista” da fome. Para este governo, houve uma tragédia, sem intenções de extermínio, e, portanto, não houve um genocídio. O Brasil não foi um dos países que reconheceram o Holodomor como genocídio. O Senado dos Estados Unidos definiu, em 2018,o Holodomor como genocídio. A questão, se foi ou não um genocídio, até hoje suscita debates.

Segundo a pesquisadora Alexandra Ilia:

"Os assassinatos na Ucrânia não foram numerosos apenas na fome de 1932-1933. O número de mortos na Ucrânia depois que os bolcheviques chegaram ao poder também foi bastante alto. Nos anos antes da fome, o regime bolchevique tentou acabar com os sentimentos nacionalistas do povo ucraniano passando por expurgos da elite intelectual, impondo língua russa e dissolução da igreja nacional".

E também disse a mesma autora:

"O fato de que os bolcheviques estavam tentando destruir a identidade nacional dos ucranianos também pode significar que a fome pode não ter sido uma tentativa fracassada de forçar a coletivização, mas uma tentativa bem-sucedida de esmagar a Ucrânia como um todo".

A seguir um trecho de “Memória da Fome” na revista Aventuras na História, Edição 228:

Holodomor se origina das palavras em ucraniano holod(fome) e mor (praga ou morte). Ele foi resultado da política de coletivização compulsória das propriedades rurais ucranianas-celeiro agrícola do leste europeu- e de outros países daquela região, introduzida no fim de 1929 pelo regime comunista soviético, então comandado por Joseph Stalin (1878-1953). Como era de se esperar, boa parte dos fazendeiros ofereceu resistência ao decreto que os obrigaria a trabalhar em fazendas coletivas, as kolhosps. Eles eram os chamados kulaks, médios e grandes proprietários de terras que empregavam trabalhadores e detinham meios de produção. Porém, muitos agricultores pobres também se opuseram ao novo sistema.

Na prática, o termo kulak ganhou conotação ideológica no sentido de denominar todos os homens e mulheres do campo contrários à coletivização das terras. “Nesse processo, perderam suas propriedades, suas ferramentas e a possibilidade de trabalho. Essa fragilização de suas condições acabou atingindo-os diretamente também pela fome. Além disso, a repressão veio na forma de prisões, de deportações e de confisco dos grãos e dos animais”, conta Vinicius Liebel, Professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A questão agrária na Ucrânia era vital, pois a União Soviética utilizava a produção agrícola (especialmente a ucraniana) como moeda no mercado mundial para financiar suas indústrias. Logo, a queda da produção em decorrência da perseguição aos kulaks ameaçava os planos de crescimento russos. “Quando ficou claro, no decorrer do ano de 1932, que era fisicamente impossível atingir a cota de requisição de grãos pelo Estado, Stalin tomado pela fúria, ordenou o confisco de todos os estoques disponíveis, em nada importando as consequências para a população local”, sustenta Adam Ulam, Diretor do Russian Research Center da Universidade de Harvard."

E ainda na mesma revista:

“Temos ainda que considerar os esforços empreendidos pela URSS para apagar os rastros da Grande Fome. Arquivos locais foram incinerados; registros de mortes, desvinculados da inanição; dados de recenseamento públicos, alterados. Os próprios ucranianos temiam abordar o ocorrido pelo risco de sofrerem represálias”.

Segundo a colunista Anne Applebaum do Washington Post e professora da London of Economics e colaboradora do New York Reviwof Books em sua obra: A Fome Vermelha:

“Nos anos que se seguiram à fome, os ucranianos foram proibidos de falar sobre o que ocorrera. Eles tinham medo de prantear em público. Mesmo que ousassem fazer isso, não existiam igrejas para orar e nem sepulturas para decorar com flores. Quando o Estado destruiu as instituições do interior ucraniano, desferiu também poderoso golpe contra a memória pública.

Na vida privada, entretanto, os sobreviventes se lembravam de tudo. Fizeram anotações reais e mentais sobre o que ocorrera. Alguns mantiveram diários, “trancados em baús de madeira”, como um deles recordou, e escondidos embaixo de assoalhos ou enterrados no chão. Nos vilarejos, no seio de suas famílias, as pessoas também contavam aos filhos o que havia acontecido(...)”.

A ilusão de muitos ucranianos de que a invasão alemã a partir de 1941 na Segunda Guerra Mundial os livraria dos sacrifícios impostos pelo governo de Stalin logo se esvaiu, como Anne explicou em sua obra: 

“Como cada potência que ocupava a Ucrânia, os nazistas, em síntese, tinham um só interesse: os grãos. Hitler já vinha alegando por algum tempo que “a ocupação da Ucrânia nos livrará de qualquer preocupação econômica” e que o território ucraniano nos livrará de qualquer preocupação econômica”, e que o território ucraniano a eles garantiria “eu ninguém mais passaria fome, como na última guerra”. Desde os últimos anos da década de 1930, seu governo vinha planejando transformar aquela aspiração em realidade. Herbert Backe, sinistro oficial nazista encarregado da alimentação e da agricultura, concebeu um “Plano da Fome”, cujos objetivos eram claros: “A guerra só pode ser vencida se toda a Wermacht for alimentada pela Rússia no terceiro ano do conflito armado”. Mas ele também concluiu que toda a Wermacht, assim como a própria Alemanha, só poderiam ser alimentadas se a população soviética fosse totalmente privada de alimentos. Como Backe explicou em suas “Diretrizes para a Política Econômica”, emitidas em maio, bem como no memorando que circulou entre mil funcionários germânicos, em junho de 1941, “fome inimaginável” em breve tomaria conta da Rússia, da Bielorrússia e das cidades industriais da URSS: Moscou e Leningrado, além de Kiev e Kharkov. Essa fome não seria acidental: o objetivo era que cerca de 30 milhões de pessoas “fossem extintas”(...)” E ainda a autora sobre as intenções dos invasores nazistas: “(...) Essa era a política de Stalin multiplicada por mil: a eliminação de nações inteiras pela fome por inanição (...). Os alemães jamais tiveram a oportunidade de implementar por completo o “Plano da Fome” na Ucrânia. Mas sua política pôde ser sentida na política de ocupação (...)”.

 

Sugestão de vídeo:  

HOLODOMOR | A HISTÓRIA DA FOME UCRANIANA

https://www.youtube.com/watch?v=aRPnem6Aon8

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História. 


Figura:

https://www.google.com/search?q=imagens+de+holodomor&sxsrf=ALiCzsbc0u5u6VQ8YkcZT_saZaZsmwh12g:


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