No início da década de 30 do século XX
houve na Ucrânia o Holodomor. Traduzindo para o português, quer
dizer “deixar morrer de fome” ou “assassinato por fome” (“holod”,
significa fome, e “mor”,significa praga ou morte). Para certos
estudiosos foi uma calamidade, mas para outros tratou-se de uma política
deliberada do ditador soviético Stalin entre 1931 e 1933 contra a população
ucraniana por motivos políticos, uma forma de extermínio, ou seja, um tipo de
genocídio. Uma corrente de pesquisadores afirma que houve intenção do governo
de Stalin de destruir a "identidade nacional ucraniana".Nesse
período, entre 3 a 8 milhões de ucranianos morreram devido à fome causada pela
política stalinista da época. Alguns analistas consideram que, se forem considerados
os efeitos prolongados de todas as ações duríssimas do Estado sob o comando de
Stalin, o número de ucranianos mortos pode ter chegado aos 14 milhões.
Os antecedentes do Holodomor estão
relacionados ao tipo de políticas econômicas de Stalin desde 1928. Stalin pretendia
controlar a produção de cereais na União Soviética, fazendo uma “requisição
compulsória”, forçando os camponeses a entregar a preços baixos para o Estado
grande parte do excedente agrícola que tinham produzido. Também houve a
coletivização forçada das propriedades agrícolas, com administração
racionalizada pelo Estado soviético. Nesse contexto, a Ucrânia mostrou forte
resistência e alimentava um sentimento nacional que não estava de acordo com a
vontade do governo soviético que tinha considerável influência da maior
república, que era a Rússia. Tal atitude ucraniana de não aceitar suas
políticas para o campo instigou Stalin a tomar medidas mais rígidas em relação
à Ucrânia.
Houve por parte do governo liderado por
Stalin uma campanha para vencer a resistência ucraniana às políticas do Estado
soviético. Intelectuais ucranianos foram perseguidos e humilhados. Focos
considerados de rebeldia contra o governo soviético foram atacados. E o próprio
campesinato foi atingido pelas medidas duras de Stalin.
Começou em 1929 uma intensa programação
de metas de produção de cereais para serem encaminhados ao poder central. As
exigências eram muito severas e os camponeses só conseguiriam atende-las se
deixassem de consumir o que era necessário para não passarem fome. Houve
prisões e condenações a trabalhos forçados por atos do campesinato como, por
exemplo, comer batatas ou colher o milho para o próprio consumo. As mortes
foram aumentando devido à fome. Os cadáveres se espalhavam pelas ruas e pelo
campo. Segundo o historiador Thomas Woods:
“Em 1933, Stalin estipulou uma nova
meta de produção e coleta, a qual deveria ser executada por uma Ucrânia que
estava agora à beira da mortandade em massa por causa da fome, que havia
começado em março daquele ano. Vou poupar o leitor das descrições mais gráficas
do que aconteceu a partir daqui. Mas os cadáveres estavam por todos os lados e
o forte odor da morte pairava pesadamente sobre o ar. Casos de insanidade, e
até mesmo de canibalismo, estão bem documentados.” (Woods, Thomas. A
fome na Ucrânia – um dos maiores crimes do estado foi esquecido. Instituto
Mises Brasil.)
Josef Stalin, que governava a União
Soviética desde a morte de Lenin em 1924, implementou o Primeiro Plano
Quinquenal visando implementar um grande processo de modernização nacional. Com
a imposição em todo o território soviético da coletivização da agricultura
privada, esperava-se aumentar a produção e assim poder vender os excedentes
agrícolas para outros países. Essa venda ajudaria a conseguir recursos para um
processo de industrialização. Os donos de terras que se recusassem a cooperar
seriam acusados de serem inimigos do Estado. Os maiores proprietários rurais
eram chamados de kulaks. Mas com o tempo, pequenos proprietários
foram também incluídos nessa categoria. Os donos de terras tinham de deixar
suas propriedades para o Estado. Se resistissem, as famílias desses
proprietários seriam tiradas á força das terras que ocupavam e envidas para
outros lugares, muitas vezes sem boas condições de sobrevivência. Intelectuais
e religiosos considerados contrários à politica de Stalin seriam também
deportados como forma de punição. Muitos camponeses empobrecidos foram
para as cidades. Em 1930 a Ucrânia se destacava nas suas colheitas, tendo
produzido 1/3 do trigo da União Soviética (URSS). Devido à insuficiência de
recursos obtidos no campo em diversas áreas da URSS, o governo central mandou
confiscar quase metade da produção agrícola ucraniana de 1930.
Além da questão econômica existia a
questão política. Conforme historiadores ucranianos, o governo stalinista
desconfiava dos ucranianos e em sua análise os mesmos desejavam sua
independência desde os anos 20, indo eles contra a ideia da Ucrânia como parte
da URSS. Dessa forma, o governo soviético esperava enfraquecer muito essas
aspirações nacionalistas e fortalecer a integração da Ucrânia na URSS. Para
esses estudiosos, a posição política do governo de Stalin teve grande
influência no Holodomor como uma maneira de submeter a
Ucrânia. A maioria dos camponeses ucranianos não concordou com a política de
coletivização. O Estado soviético, cujo controle estava nas mãos de Stalin,
forçou os camponeses ucranianos a entregarem suas terras, gado e ferramentas
agrícolas e os mandou trabalhar em fazendas coletivas.
Os ucranianos, em 1932, que estavam
sujeitos ao planejamento rígido central tiveram a situação agravada por
condições duras do clima, a existência de pragas, a necessidade de mais
equipamentos para a colheita e a desmotivação dos camponeses em participar das
fazendas coletivas. Diante disso, não houve apoio do governo central soviético
e sim um aumento das exigências de cumprimento de metas mensais. Se uma pessoa
fosse pega tirando comida para fora das áreas produtivas, seria presa. Ninguém
poderia ter seu estoque pessoal de comida. Conforme pesquisadores, aldeias
inteiras foram dizimadas e, em algumas regiões, a taxa de mortalidade pode ter
alcançado um percentual de 30%.
As dificuldades enfrentadas pelos
ucranianos levaram, no início de 1933, a uma rebelião que se espalhou, havendo
sabotagem da produção. A reação do governo stalinista foi uma brutal repressão,
com a prisão de cem mil pessoas que foram enviadas para campos de trabalhos
forçados, os gulags. Por volta da metade desse ano, cerca de 30 mil
ucranianos morriam por dia. A fome era tanta que ocorreram casos de
canibalismo. Diante de atos de resistência, milícias a serviço do governo
soviético iam até as e levaram tudo o que era comestível. Quando a fome estava
no auge, autoridades soviéticas fecharam as fronteiras para que camponeses não
fugissem para outros países.
O fim do Holodomor, após
milhões de mortos, se deu com ajustes no programa de coletivização da
agricultura. Segundo Simon Starrow, um professor ucraniano que viveu nos
Estados Unidos e que usou o pseudônimo de Miron Dolot: “No fim de maio de
1933, a fome amainou. Acabou a inanição em massa. Verduras e frutas estavam
disponíveis em abundância para todos que fossem capazes de sair e procurar por
eles. Além disso, as autoridades precisavam de trabalhadores para as fazendas e
elas não tinham outra escolha senão a de fornecer aos membros que trabalhavam
no kolhosp rações alimentares suficientes para sustentar sua
existência”.
Foi aprovada na Ucrânia em 2006 uma lei
reconhecendo o Holodomor como uma ação genocida. Vinte países
acompanharam esse reconhecimento. Mas a ONU não se pronunciou oficialmente
sobre a questão. O governo russo nunca reconheceu que tenha acontecido um
genocídio. Uma versão do governo russo foi de que os ucranianos estariam tendo
uma “interpretação nacionalista” da fome. Para este governo, houve uma
tragédia, sem intenções de extermínio, e, portanto, não houve um genocídio. O
Brasil não foi um dos países que reconheceram o Holodomor como
genocídio. O Senado dos Estados Unidos definiu, em 2018,o Holodomor como
genocídio. A questão, se foi ou não um genocídio, até hoje suscita debates.
Segundo a pesquisadora Alexandra Ilia:
"Os assassinatos na Ucrânia não
foram numerosos apenas na fome de 1932-1933. O número de mortos na Ucrânia
depois que os bolcheviques chegaram ao poder também foi bastante alto. Nos anos
antes da fome, o regime bolchevique tentou acabar com os sentimentos
nacionalistas do povo ucraniano passando por expurgos da elite intelectual,
impondo língua russa e dissolução da igreja nacional".
E também disse a mesma autora:
"O fato de que os bolcheviques
estavam tentando destruir a identidade nacional dos ucranianos também pode
significar que a fome pode não ter sido uma tentativa fracassada de forçar a
coletivização, mas uma tentativa bem-sucedida de esmagar a Ucrânia como um
todo".
A seguir um trecho de “Memória
da Fome” na revista Aventuras na História, Edição 228:
“Holodomor se origina das
palavras em ucraniano holod(fome) e mor (praga ou
morte). Ele foi resultado da política de coletivização compulsória das
propriedades rurais ucranianas-celeiro agrícola do leste europeu- e de outros
países daquela região, introduzida no fim de 1929 pelo regime comunista
soviético, então comandado por Joseph Stalin (1878-1953). Como era de se
esperar, boa parte dos fazendeiros ofereceu resistência ao decreto que os
obrigaria a trabalhar em fazendas coletivas, as kolhosps. Eles eram
os chamados kulaks, médios e grandes proprietários de terras que empregavam
trabalhadores e detinham meios de produção. Porém, muitos agricultores pobres
também se opuseram ao novo sistema.
Na prática, o termo kulak ganhou
conotação ideológica no sentido de denominar todos os homens e mulheres do
campo contrários à coletivização das terras. “Nesse processo, perderam suas
propriedades, suas ferramentas e a possibilidade de trabalho. Essa fragilização
de suas condições acabou atingindo-os diretamente também pela fome. Além disso,
a repressão veio na forma de prisões, de deportações e de confisco dos grãos e
dos animais”, conta Vinicius Liebel, Professor de História Contemporânea da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A questão agrária na Ucrânia era vital,
pois a União Soviética utilizava a produção agrícola (especialmente a
ucraniana) como moeda no mercado mundial para financiar suas indústrias. Logo,
a queda da produção em decorrência da perseguição aos kulaks ameaçava
os planos de crescimento russos. “Quando ficou claro, no decorrer do ano de
1932, que era fisicamente impossível atingir a cota de requisição de grãos pelo
Estado, Stalin tomado pela fúria, ordenou o confisco de todos os estoques
disponíveis, em nada importando as consequências para a população local”,
sustenta Adam Ulam, Diretor do Russian Research Center da Universidade de
Harvard."
E ainda na mesma revista:
“Temos ainda que considerar os esforços
empreendidos pela URSS para apagar os rastros da Grande Fome. Arquivos locais
foram incinerados; registros de mortes, desvinculados da inanição; dados de
recenseamento públicos, alterados. Os próprios ucranianos temiam abordar o
ocorrido pelo risco de sofrerem represálias”.
Segundo a colunista Anne Applebaum
do Washington Post e professora da London of
Economics e colaboradora do New York Reviwof Books em
sua obra: A Fome Vermelha:
“Nos anos que se seguiram à fome, os
ucranianos foram proibidos de falar sobre o que ocorrera. Eles tinham medo de
prantear em público. Mesmo que ousassem fazer isso, não existiam igrejas para
orar e nem sepulturas para decorar com flores. Quando o Estado destruiu as
instituições do interior ucraniano, desferiu também poderoso golpe contra a
memória pública.
Na vida privada, entretanto, os
sobreviventes se lembravam de tudo. Fizeram anotações reais e mentais sobre o
que ocorrera. Alguns mantiveram diários, “trancados em baús de madeira”, como
um deles recordou, e escondidos embaixo de assoalhos ou enterrados no chão. Nos
vilarejos, no seio de suas famílias, as pessoas também contavam aos filhos o
que havia acontecido(...)”.
A ilusão de muitos ucranianos de que a
invasão alemã a partir de 1941 na Segunda Guerra Mundial os livraria dos
sacrifícios impostos pelo governo de Stalin logo se esvaiu, como Anne explicou
em sua obra:
“Como cada potência que ocupava a
Ucrânia, os nazistas, em síntese, tinham um só interesse: os grãos. Hitler já
vinha alegando por algum tempo que “a ocupação da Ucrânia nos livrará de
qualquer preocupação econômica” e que o território ucraniano nos livrará de
qualquer preocupação econômica”, e que o território ucraniano a eles garantiria
“eu ninguém mais passaria fome, como na última guerra”. Desde os últimos anos
da década de 1930, seu governo vinha planejando transformar aquela aspiração em
realidade. Herbert Backe, sinistro oficial nazista encarregado da alimentação e
da agricultura, concebeu um “Plano da Fome”, cujos objetivos eram claros: “A
guerra só pode ser vencida se toda a Wermacht for alimentada pela Rússia no
terceiro ano do conflito armado”. Mas ele também concluiu que toda a Wermacht,
assim como a própria Alemanha, só poderiam ser alimentadas se a população
soviética fosse totalmente privada de alimentos. Como Backe explicou em suas
“Diretrizes para a Política Econômica”, emitidas em maio, bem como no memorando
que circulou entre mil funcionários germânicos, em junho de 1941, “fome
inimaginável” em breve tomaria conta da Rússia, da Bielorrússia e das cidades
industriais da URSS: Moscou e Leningrado, além de Kiev e Kharkov. Essa fome não
seria acidental: o objetivo era que cerca de 30 milhões de pessoas “fossem
extintas”(...)” E ainda a autora sobre as intenções dos invasores nazistas:
“(...) Essa era a política de Stalin multiplicada por mil: a eliminação de
nações inteiras pela fome por inanição (...). Os alemães jamais tiveram a
oportunidade de implementar por completo o “Plano da Fome” na Ucrânia. Mas sua
política pôde ser sentida na política de ocupação (...)”.
Sugestão de vídeo:
HOLODOMOR | A
HISTÓRIA DA FOME UCRANIANA
https://www.youtube.com/watch?v=aRPnem6Aon8
_____________________________________
Márcio
José Matos Rodrigues-Professor de História.
Figura:
https://www.google.com/search?q=imagens+de+holodomor&sxsrf=ALiCzsbc0u5u6VQ8YkcZT_saZaZsmwh12g:
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