sábado, 18 de dezembro de 2021

O poeta alemão Rainer Maria Rilke

 







Em 4 de dezembro de 1875, nasceu o poeta e novelista de língua alemã Rainer Maria Rilke, em Praga, atual capital da República Tcheca e na época uma grande cidade da Boêmia,  pertencente ao Império Austro-Húngaro. O nome dele originalmente era René e ele mudou para Rainer. Devido à sua obra inovadora e à qualidade de seu estilo lírico é considerado um importante poeta moderno da literatura e da língua alemã. Sua poesia incentivava o pensamento existencialista e estimulando os leitores a um enfrentamento com questões relativas ao desencantamento da primeira metade do século XX. Houve uma influência expressionista na obra de Rilke e a obra dele influenciou autores de diversos países.

Seu pai era o funcionário público Josef Rilke que tinha sido militar, mas que não foi bem sucedido nessa carreira. Sua mãe era Sophia Entz, oriunda de uma abastada família de Praga, que se tornou insatisfeita por ter casado com alguém abaixo da sua classe social, o que acabou causando a infelicidade no casamento dos pais de Rilke. A irmã do poeta faleceu após uma semana de vida e a mãe dele passou a trata-lo como se fosse a filha perdida quando ele era criança.

Com dez anos Rilke foi mandado por seu pai em 1886 para uma academia militar de tradição rígida. Foram cinco anos tristes para Rilke os que ele passou lá. Adoentado, ele saiu de lá em 1891. Um tio reconheceu que Rilke tinha certas habilidades e conseguiu para ele uma vaga em uma escola preparatória alemã, na qual ficou por um ano até sua expulsão da mesma. Aos 16 anos ele retornou a Praga e de 1892 a 1895 ele foi preparado para frequentar um curso universitário no qual foi aprovado. Ele ficou um ano estudando literatura, história da arte e filosofia na Charles University em Praga. Em 1895, já certo de que tinha talento literário, ele pagou de seu próprio bolso a publicação de um volume de poesia de amor, chamado de Life and Songs (Leben und Lieder),seguindo o estilo poético do autor Heinrich Heine. Pouco tempo depois publicou mais dois volumes. 

Em Munique, no ano de 1897, quando estava estudando nessa cidade, ele se apaixonou pela escritora Lou Andreas-Salomé, filha de um general russo e mãe alemã, que tinha 36 anos e que influenciou a vida de Rilke. Ela tinha um casamento de tipo aberto e foi cortejada por homens famosos como Paul Rée e Friedrich Nietzsche. No relacionamento com Rilke ela agiu em grande parte de forma maternal com ele e essa relação durou até 1900, mas mantiveram contato até a morte dele. Salomé sugeriu que Rilke mudasse seu nome de Renê para Rainer, que ela considerava mais germânico. Ela levou Rilke em duas viagens à Rússia e ele pôde conhecer Tolstoi e a família de Boris Pasternak. A cultura russa e a boêmia seriam grandes e duradouras influências no trabalho de Rilke. Esse contato com a cultura russa tornou mais sólidas as tendências místicas, espirituais e humanitárias dele.

Em 1900 Rilke estava na colônia de artistas em Worpswede e lá reforçou o seu trabalho poético e publicou obras menos conhecidas. Nessa época ele conheceu a escultora Clara Westhoff, ex-aluna de Auguste Rodin. Eles se casaram em 1901 e em dezembro desse ano nasceu a filha deles. Porém o casamento não foi bem sucedido e os dois se separaram, embora não tenham se divorciado.

Em 1902 Rilke passou a morar em Paris e lá escreveu um livro sobre o escultor Auguste Rodin, tendo se tornado secretário e amigo do artista, o qual era muito admirado por Rilke. O único romance de Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de 1910, mostra certas dificuldades do autor em seus primeiros dias em Paris. Nesse tempo ele viveu alguns de seus anos mais produtivos poeticamente. Uma de suas melhores obras The Book of Hours (O Livro das Horas), foi publicada em 1905 e 1907 foi publicada a obra New Poems.

A inspiração religiosa experimentada na Rússia levou Rilke a desenvolver uma religiosidade mística mostrada em O Livro das Horas, que foi escrito em sua maior parte na colônia do autor em Worpswede e concluído em Paris. Nos Novos Poemas Rilke publicou os seus chamados poemas-coisas.

Rilke viajou pelo norte da África e pela Europa. Estava em uma fase de inquietação interior e angústia. Ele esteve hospedado no Castelo Duino, perto de Trieste pertencente à princesa Maria de Thurn und Taxis e começou a escrever as Elegias do Duino, que só foi concluído tempos depois.

Rilke estava na Alemanha quando começou a Primeira Guerra Mundial. Não pôde voltar para sua casa em Paris, que foi confiscada. Ficou então em Munique. De início mostrou patriotismo, mas depois passou a se opor aos esforços de guerra da Alemanha. Ele apoiou a Revolução Russa de 1917 e também a República Soviética da Baviera em 1919. Não se pronunciou sobre a ascenção do fascismo na Europa e elogiou uma vez Mussolini em uma carta. O poeta não era a favor das guerras e não gostou de certa vez ter sido comvocado para treinamento militar. Quando esteve no exército não produziu como poeta.

Rilke foi para a Suiça dar uma palestra e se mudou para lá. Instalou-se no Château de Muzot, um torre medieval, que foi restaurada por Werner Reinhart, que ajudou financeiramente o poeta, que iniciou uma fase muito criativa. Em 1923 ele publicou Elegias do Duino, dedicado à princesa Maria. Pouco depois dessa publicação Rilke publicou Sonetos a Orfeu, uma obra bem elogiada.

A partir de 1923 o poeta apresentou alguns problemas de saúde e foi para um sanatório nas montanhas próximo ao lago Genebra. Sentia-se deprimido e tinha feridas na boca e dor no estômago. Mesmo nessa situação, ele ainda produziu, traduzindo poesia francesa, como obras de André Gide e Paul Valéry, o que influenciou em uma quantidade considerável de poesia dele mesmo na língua francesa.

 

Em 29 de dezembro de 1926 Rilke morreu de leucemia em Montreux, aos 51 anos e foi enterrado em um cemitério próximo à cidade suíça de Visp.

 

Principais obras de Rilke: : Vida  e Canções (Leben und Lieder), 1894; Historias do bom Deus (Geschichten vom lieben Gott), 1900; Historias de ouro (Vom lieben Gott und Anderes), 1900; Poemas (Geldbaum), 1901; Livro de Imagens (Das Buch der Bilder), 1902. Augusto Rodin (Auguste Rodin), 1903; O livro das horas (Stundenbuch), 1905;  Histórias de amor e de morte do corneteiro Christopher Rilke, (Die Weise von Liebe und Tod des Cornet Christopher Rilke), 1906; Novos poemas (Neue Gedichte), 1907-1908;  Os Cadernos de Malte Laurids Brigge (Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge), 1910;  A vida de Maria (Das Merien Leben), 1913;  Cartas a um jovem poeta (Briefe an einen jungen Dichter), 1920; O testamento, 1921;  Elegias de Duíno (Duineser Elegien), 1923; Sonetos a Orfeu (Sonette an Orpheus), 1923.
  

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"Poeta fundamental, Rilke é a voz de uma época em transição. Talvez seja a última voz do seu tempo, aquela que anunciou o "fim dos tempos modernos", como quer Romano Guardini, e ao mesmo tempo a primeira voz e o primeiro poeta dessa nova era que estamos começando a viver."

Paulo Plínio Abreu -
Sobre a obra de Rilke, publicação no jornal Paraense "Folha do Norte" entre os anos de 1946 e 1948

 

Segundo o doutor em Letras Alexandre Rodrigues da Costa

"...Novalis, repetidas vezes, em seus fragmentos, enuncia um pensamento que será de grande importância para se entender como dois autores tão diferentes um do outro, como podem ser Rainer Maria Rilke e Clarice Lispector, problematizam em suas obras a relação do sujeito com o mundo. Tal pensamento, que o poeta alemão teoriza em seus escritos, antecipa não só as preocupações de Rilke e de Clarice sobre a questão do sujeito e o espaço à sua volta como guarda semelhanças com algumas reflexões ligadas à fenomenologia da percepção de Maurice Merlau-Ponty. No fragmento 20 de suas “Observações entremescladas”, Novalis assim expõe: “A sede da alma é ali onde o mundo interior e o mundo exterior se tocam. Onde eles se interpenetram - está ela em cada ponto da interpretação” (Hardenberg, 1988, p. 45).

É interessante notar que Novalis não nega o elemento racional desse contato do mundo interior com o mundo exterior, já que é exatamente a consciência da percepção que garantiria a união com o mundo: “O mais arbitrário dos preconceitos é que ao ser humano seja negada a faculdade de ser fora de si, de estar em consciência além dos sentidos. O ser humano é capaz de ser em cada instante um ser supra-sensível. Sem isso não seria cidadão do mundo - seria um animal” (Hardenberg, 1988, p. 49). Embora pareça que a fala de Novalis discorde do pensamento de Rilke e de Clarice quanto à questão do racional como entendimento do mundo, veremos que a consciência não é totalmente negada por ambos escritores, já que ela aponta para o entrecruzamento do sujeito com o objeto de sua percepção, para a possibilidade de romper os limites que separam um do outro. Quando Maurice Merleau-Ponty nos diz que “o interior e o exterior são inseparáveis”, que “o mundo está inteiro dentro de mim e eu estou inteiro fora de mim” (Merleau-Ponty, 1999, p. 546), suas proposições imediatamente nos lembram a de Novalis, com o detalhe de que o filósofo francês se detém na maneira como se dá esse contato entre o interno e o externo (...)

Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma delas; é captado na contextura do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas já que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo à volta de si; elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas na sua carne, fazem parte da sua definição plena, e o mundo é feito do próprio estofo do corpo (Merleau-Ponty, 1984, p. 89).

Essa consciência de que as coisas são um anexo e um prolongamento do corpo é possível perceber tanto na obra de Rilke quanto na de Clarice, já que, em ambas, as coisas não são percebidas como inertes, mas estendidas até nós como uma espécie de ponto de reunião, ou seja, algo que exige nossa presença, nosso olhar. Não se trata de personificá-las, de inseri-las em um contexto humano, mas de uma mútua identificação, no sentido de vê-las como seres a partir dos quais nossa existência se faz necessária. Para Merleau-Ponty, isso se deve à forma como nos posicionamos frente ao mundo, como “as coisas são o prolongamento do meu corpo e o meu corpo é o prolongamento do mundo” (Merlau-Ponty, 2000, p. 230).2 É através desse duplo movimento que surge essa superfície de contato que o filósofo francês chama de quiasma, “carne do mundo”, cujo conceito aponta para o instante no qual a percepção do sujeito se entrelaça com o objeto de sua atenção. Essa diluição de fronteiras entre o corpo e o mundo faz com que a percepção não se centralize apenas no sujeito, mas também nas coisas. Os textos de Rilke e de Clarice tornam presente, dessa forma, o espaço onde se reúnem tanto a percepção do sujeito quanto a percepção que as coisas têm desse sujeito. Paul de Man, ao dedicar um estudo sobre a obra de Rilke, conseguiu precisar como essa interseção entre o sujeito e o objeto, o quiasma, é possível de ser rastreada, em seus aspectos retóricos,3 ao longo de seus poemas:

A figura determinante da poesia de Rilke é a do quiasma, o cruzamento que inverte os atributos de palavras e coisas. Os poemas são compostos de entidades, objetos e sujeitos, que se comportam como palavras, que “brincam” de linguagem de acordo com as regras da retórica, assim como uma pessoa brinca de bola de acordo com as regras do jogo (Man, 1996, p. 56).

A análise que Paul de Man faz da obra de Rilke ajuda-nos a refletir sobre o quiasma não simplesmente como um elemento estruturador de seus poemas, mas também como aquilo que permite abordar a predileção do poeta pelas coisas, no momento em que escreve sobre elas, a partir de uma exterioridade ficcionalizada. Antes de ser uma simples inversão de atributos, o quiasma nos ajuda a perceber como se dá o entrelaçamento do sujeito com o mundo, como um se torna prolongamento do outro, como se dá “a ramificação de meu corpo e a ramificação do mundo e a correspondência do seu dentro e do meu fora, do meu dentro e do seu fora” (Merlau-Ponty, 2000, p. 132). Dessa forma, o quiasma adquire dois sentidos na obra de Rilke, que, como veremos, estão também presentes em Clarice Lispector: um que aponta para a própria construção de sua escrita e outro que possibilita ver como ocorre o desaparecimento da voz particular do sujeito, já que o quiasma, “ao cruzar os atributos de interior e exterior, leva à aniquilação do sujeito consciente” (Man, 1996, p. 54). Esse cruzamento do interior e do exterior é constantemente explorado pelo poeta, ao longo de sua obra, como pode ser percebido neste poema, datado de junho de 1924:

O espaço através do qual os pássaros se lançam não é o espaço verdadeiro, que te revela a forma. Lá fora, deves recusar-te para desaparecer, para não mais retornar. O espaço extrai de nós as coisas e as traduz: para que te tenha êxito o ser de uma árvore lança o espaço interior em volta dela, esse espaço que está em ti. Se tentas retê-lo, ele não se confina. Apenas na imagem de tua renúncia, ele realmente se torna árvore (Rilke, 1965, p. 167-168)

O poema, sem título, revela como se dá esse contato do sujeito com o mundo a partir de um espaço que se realiza na recusa de um pensamento objetivo, de um mundo inteiramente pronto. O que se tem, aí, é a realização do espaço como “o grande sossego das coisas que não são forçadas a nada” (Rilke, 1995, p. 110-111), no sentido de que sua forma não está condicionada por aquilo que acreditamos ser a tradução de um pensamento racional, mas por um ver cuja definição está muito próxima da de Merleau-Ponty: “a visão não é um certo modo do pensamento ou da presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser, só no termo da qual eu me fecho sobre mim” (Merleau-Ponty, 1984, p. 108). O espaço, que Rilke evoca em seu poema e ao longo de sua obra, é exatamente isto: estar ausente de si mesmo. Mas um ausentar-se no qual, por exemplo, “a paisagem se pensa em mim e sou sua consciência” (Merleau-Ponty, 1984, p. 119), de forma que as identidades se perdem para se encontrarem, se perdem para criarem um espaço no qual as coisas ao mesmo tempo subsistem por si mesmas e se entrelaçam ao olhar de quem as percebe.

Esse espaço seria aquilo que Rilke chama de Weltinnenraum, o espaço interior do mundo, no qual aquele que olha e o que é olhado não estão em oposição, e onde os limites que definem o interior e o exterior apagam-se em favor de uma identidade única. Nesse sentido, o olhar se constrói na evocação de sua própria ausência e o que, a princípio, poderia ser vazio acaba sendo um todo preenchido por uma existência baseada na renúncia, na abdicação dos limites que definem e garantem o reconhecimento da identidade na recusa da do outro. Essa negação da primazia do eu sobre as coisas é possível, porque, na obra de Rilke, segundo Paul de Man,a assimilação do sujeito ao espaço não ocorre realmente como o resultado de um intercâmbio analógico, mas por uma apropriação radical que de fato implica a perda, o desaparecimento do sujeito como sujeito. Ele perde a individualidade de uma voz particular transformando-se em nada mais, nada menos que a voz das coisas, como se o ponto de vista central tivesse sido deslocado do eu para as coisas externas. Da mesma forma, essas coisas externas perdem sua solidez e se tornam tão vazias e vulneráveis como nós mesmos (Man, 1996, p. 53-54) (...)"


Poesias de Rilke:

O torso arcaico de Apolo

Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erger-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.

)

 - Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?

Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.

Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.
Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.

Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.

 

- Hora Grave

Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.


Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.

Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.

Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.

 

Morgue

Estão prontos, ali, como a esperar
que um gesto só, ainda que tardio,
possa reconciliar com tanto frio
os corpos e um ao outro harmonizar;

como se algo faltasse para o fim.
Que nome no seu bolso já vazio
há por achar? Alguém procura, enfim,
enxugar dos seus lábios o fastio:

em vão; eles só ficam mais polidos.
A barba está mais dura, todavia
ficou mais limpa ao toque do vigia,

para não repugnar o circunstante.
Os olhos, sob a pálpebra, invertidos,
olham só para dentro, doravante.



A Pantera
                        No Jardin des Plantes, Paris

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

 

A Gazela
                            Gazella Dorcas

Mágico ser: onde encontrar quem colha
duas palavras numa rima igual
a essa que pulsa em ti como um sinal?
De tua fronte se erguem lira e folha

e tudo o que és se move em similar
canto de amor cujas palavras, quais
pétalas, vão caindo sobre o olhar
de quem fechou os olhos, sem ler mais,

para te ver: no alerta dos sentidos,
em cada perna os saltos reprimidos
sem disparar, enquanto só a fronte

a prumo, prestes, pára: assim, na fonte,
a banhista que um frêmito assustasse:
a chispa de água no voltear da face.

 

São Sebastião

Como alguém que jazesse, está de pé,
sustentado por sua grande fé.
Como mãe que amamenta, a tudo alheia,
grinalda que a si mesma se cerceia.

E as setas chegam: de espaço em espaço,
como se de seu corpo desferidas,
tremendo em suas pontas soltas de aço.
Mas ele ri, incólume, às feridas.

Num só passo a tristeza sobrevém
e em seus olhos desnudos se detém,
até que a neguem, como bagatela,
e como se poupassem com desdém
os destrutores de uma coisa bela.

 

O Anjo

Com um mover da fronte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.

O céu com muitas formas Ihe aparece
e cada qual demanda: vem, conhece -.
Não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem

à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.

 

Fonte Romana
                               Borghese

Duas velhas bacias sobrepondo
suas bordas de mármore redondo.
Do alto a água fluindo, devagar,
sobre a água, mais em baixo, a esperar,

muda, ao murmúrio, em diálogo secreto,
como que só no côncavo da mão,
entremostrando um singular objeto:
o céu, atrás da verde escuridão;

ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constante-
mente, impassível e sem nostalgia,

descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia.

Dançarina Espanhola

Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com a arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então, como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.

 

O homem que lê

Eu lia há muito. Desde que esta tarde

com o seu ruído de chuva chegou às janelas.

Abstraí-me do vento lá fora:

o meu livro era difícil.

Olhei as suas páginas como rostos

que se ensombram pela profunda reflexão

e em redor da minha leitura parava o tempo. —

De repente sobre as páginas lançou-se uma luz

e em vez da tímida confusão de palavras

estava: tarde, tarde... em todas elas.

Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já

as longas linhas, e as palavras rolam

dos seus fios, para onde elas querem.

Então sei: sobre os jardins

transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;

o sol deve ter surgido de novo. —

E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:

o que está disperso ordena-se em poucos grupos,

obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas

e estranhamente longe, como se significasse algo mais,

ouve-se o pouco que ainda acontece.

 

E quando agora levantar os olhos deste livro,

nada será estranho, tudo grande.

Aí fora existe o que vivo dentro de mim

e aqui e mais além nada tem fronteiras;

apenas me entreteço mais ainda com ele

quando o meu olhar se adapta às coisas

e à grave simplicidade das multidões, —

então a terra cresce acima de si mesma.

E parece que abarca todo o céu:

a primeira estrela é como a última casa.

 

 

Frases de Rilke:

 

“Amor são duas solidões protegendo-se uma à outra.”

“Os homens, com o auxílio das convenções, têm resolvido tudo com facilidade e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que precisamos ater-nos ao difícil.”

“ As obras de arte são de uma solidão infinita: nada pior do que a crítica para as abordar. Apenas o amor pode captá-las, conservá-las, ser justo em relação a elas.”

"O que se torna preciso é, no entanto, isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas - eis o que se deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e grandes porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações."

“O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A dificuldade dele reside no complicado. A vida mesma, porém, é difícil pela simplicidade. Tem apenas algumas coisas de um tamanho que nos não é adequado. O santo, rejeitando o destino, escolhe estas coisas, em face de Deus. Mas que a mulher, conforme à sua natureza, tenha de fazer a mesma escolha em relação ao homem, é o que evoca a fatalidade de todas as relações de amor: resoluta e sem destino como uma eterna, ergue-se ela ao lado dele, dele que se transforma. Sempre a amante ultrapassa o amado, porque a vida é maior do que o destino. O dom de si mesma quer ser desmedido: é esta a sua ventura. A dor inominada do seu amor, porém, foi sempre esta: que se exija dela que limite este dom de si mesma.”
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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História


Figura: https://www.google.com/search?sxsrf=AOaemvKD_HAqiyqwBuAX5t4asPdWZ5UIww:1639876173126&source=univ&tbm=isch&q=imagem+de+rilke&fir=az


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