quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

A situação atual entre Ucrânia e Rússia

 





Está sendo muito noticiada a tensão existente entre a Ucrânia e a Rússia, outrora repúblicas da extinta União Soviética. Esta situação envolve também a União Europeia e os Estados Unidos. Na verdade a questão abrange aspectos geopolíticos, econômicos, culturais e militares.

A Ucrânia é um país de grandes recursos agrícolas (considerada o “celeiro Europa" devido à fertilidade de suas terras). Está localizado na Europa Oriental com 603 628 quilômetros quadrados (o maior país totalmente no continente europeu) cerca de 44 milhões de habitantes segundo informação do ano de 2020. Faz fronteira com a leste e nordeste com a Rússia; a noroeste com a Bielorússia; a oeste com com Polônia, Eslováquia e Hungria; a sudoeste com Romênia e Moldávia e ao sul e sudeste com o Mar Negro e o Mar de Azov.

Historicamente, há aproximadamente 4 mil anos, o território ucraniano começou a ser habitado. É possível que a região seja onde se começou a se domesticar cavalos e onde se iniciaram línguas indo-europeias. Na Idade Média foi um núcleo cultural dos eslavos do leste: a Rússia de Kiev. Esse Estado era poderoso nos séculos IX, X, XI e XII e estabeleceu os fundamentos das identidades nacionais ucraniana e outras nações eslavas orientais. A capital era Kiev.  Havia uma elite política formada por varegues (vindos da Escandinávia), que se integraram à população local e formaram a dinastia ruríquida. Vários príncipes dessa dinastia dominavam a região e não raramente guerreavam entre si. O principado abrangia terras das atuais Ucrânia, Bielorrússia e da Rússia europeia. No reinado de Vladimir, o Grande (980-1015), o Estado de Kiev se aproximou do cristianismo do Império Bizantino e no reinado de Jeroslau I, filho de Vladimir, houve um maior poder militar e cultural.

No século XIII o território da Ucrânia ficou fragmentado e houve a invasão por povos diversos, como os mongois, que a dividiram e passaram a domina-la. No século XIV, o rei da Polônia, Casimiro IV, conquistou grande parte da região e também os lituanos fizeram conquistas no território da antiga Rússia de Kiev. No século XVI houve a União de Lublim, criando a Comunidade Polaco-Lituana que dominou o território ucraniano.

Em 1648, após uma grande rebelião cossaca contra o rei polonês João Casimiro, houve uma partilha da Ucrânia entre a Polônia e a Rússia. Mas com as partilhas da Polônia no século XVIII entre a Prússia, a Aústria e a Rússia, houve una divisão do território ucraniano entre Aústria e Rússia. Os ucranianos ligados ao Império Russo participaram de guerras contra monarquias ocidentais e contra o Império Otomano, tendo havido ucranianos que ocuparam altos postos da administração czarista e da Igreja Ortodoxa russa.

Em relação à cidade de Kiev (atual capital da Ucrânia), ela passou para o domínio da Rússia no século XVII. No século XIX, nos anos 40, o historiador Mykola Kostomarov fundou a irmandade de São Cirilo e São Metódio, propganado a ideia de um federação do povo eslavo livre, com destaque para os ucranianos que ficariam separados da nação russa. O movimento foi reprimido pelo poder russo.

A Ucrânia gradualmente perdia autonomia no século XIX e houve uma grande migração de russos e mudanças administrativas promovidas pelo Império Russo.  Kiev foi dominada pela população russa no início do século XX, mas a população mais pobre manteve muitos costumes ucranianos. Também nobres, militares e comerciantes de origem ucraniana fizeram ações de preservação da cultura nativa de Kiev, que desde o fim do século XIX tornou-se um importante centro comercial do Império Russo e alguns anos depois também um destacado centro industrial, sendo que a primeira linha de bonde elétrico do Império Russo foi implantada na cidade. Após a revolução bolchevique, no século XX, foi consolidada a república soviética da Ucrânia. Nos anos de 1920 houve uma considerável migração da população de língua ucraniana do campo para Kiev, que foi muito industrializada durante a fase de industrialização soviética dessa época. A Ucrânia foi muito afetada pela grande fome do início dos anos 30 e a maioria dos intelectuais ucranianos foi morta na repressão política de Stalin.

Durante a Segunda Guerra Mundial houve muitas mortes e destruição na Ucrânia, inclusive terríveis massacres de judeus. Nos anos de 1980 houve a catástrofe da usina nuclear de Chernobil. E no início dos anos 90 houve o colapso da União Soviética. Em 1991, com o fim da União Soviética (URSS), a Ucrânia tornou-se independente. Possui 24 oblasts (províncias). Destacou-se em 2011 como o terceiro maior exportador de grãos do mundo. Possui importantes indústrias aeronáuticas e de equipamentos. Politicamente tem um sistema semipresidencial. Seu exército é o terceiro maior da Europa, o francês é o segundo e o russo é o maior de todos. A composição da população é na maioria de ucranianos étnicos (cerca de 77%), vindo em seguida russos (17%) e minorias de bielorrussos e romenos. A língua oficial é o ucraniano e a outra língua muito falada é o russo. O alfabeto destas duas línguas é o cirílico. Na religião predomina o cristianismo ortodoxo oriental.

Mais recentemente, em 2013, houve um movimento político na Ucrânia em direção à União Europeia. A partir de 2014 passaram a haver conflitos envolvendo a Rússia e a Ucrânia. Nesse ano, a Rússia incorporou o território da Crimeia e a partir de então houve enfrentamentos militares na região de fronteira entre Rússia e Ucrânia, com a incorporação parcial do extremo leste ucraniano com o apoio de milícias locais pró-Rússia, com um saldo de milhares de mortos.  E, atualmente, há mais de 100 mil soldados na fronteira com a Ucrânia. No momento, o inverno está atrapalhando o transporte militar e ainda não foram instalados hospitais de campanha em número suficiente. Esses são elementos que podem estar atrasando um grande ataque, mas não impedem de começar ao menos parcialmente.

O exército ucraniano tem forças consideráveis e está bem armado com equipamentos ocidentais. Segundo alguns especialistas, uma resistência maior dos ucranianos poderia começar a esgotar os esforços militares russos, embora com grandes perdas de ambos os lados. O governo dos Estados Unidos está cogitando fazer retaliações no caso de um ataque russo, atrapalhando o fornecimento de gás russo à Europa (o que poderá causar dificuldades a países europeus) e fazendo bloqueios que afetem o sistema financeiro russo (o que pode levar a uma aproximação maior da Rússia com a China, para compensar as perdas russas).

A Ucrânia tem acusado Moscou de estar coordenando ataques cibernéticos e disseminando fake news. A nível mundial, um ataque russo pode afetar o preço do barril de petróleo. Este aumento poderá atingir também o Brasil. Outras consequências estão ligadas a uma possível crise migratória e à questão energética europeia, afetando, por exemplo, a economia alemã. Devido a esta questão relativa ao fornecimento de gás russo, não há um consenso de nações europeias sobre a reação a um ataque da Rússia. Os Estados Unidos já estão colocando de prontidão alguns milhares de soldados que poderão ser deslocados para o leste europeu e também navios estão sendo mandados para a região do Mar Negro. 

A seguir análises de especialistas:

Segundo o professor aposentado de História Contemporânea, Antônio Barbosa, da Universidade de Brasília (UnB): “É uma questão basicamente de geopolítica, mexendo com o tabuleiro de xadrez da política internacional. É como se fosse um triângulo com três vértices: de um lado a Rússia, do outro lado os Estados Unidos e o terceiro vértice seria a Europa propriamente dita. E, no meio de toda esta confusão, está a Ucrânia”. E ainda disse: “Putin está conseguindo mostrar que, apesar de a União Soviética não existir mais, de ter perdido o controle sobre os países do Leste Europeu, a Rússia continua sendo uma grande potência, inclusive mantendo intacto o seu arsenal nuclear”.

Para o professor Toal, da Universidade de Virgínia Tech (EUA): “A Rússia está seguindo essas políticas no momento porque percebe que um país que está perto de sua fronteira está se tornando uma plataforma para uma aliança militar ameaçadora. Portanto, tem a ver com possibilidade de a Ucrânia se tornar membro da OTAN e assim passar a armazenar mísseis e tropas dessa aliança”. Esse professor também diz: “A Rússia não vê a Ucrânia como apenas um país. A visão dominante do nacionalismo russo é que a Ucrânia é uma nação eslava irmã e, além disso, o coração da nação russa. Essa é uma ideologia muito poderosa, que faz da Ucrânia um elemento central da identidade russa”. Diz também: “Portanto, há sentimentos muito fortes quando a Ucrânia como nação se define em oposição à Rússia. Isso causa muita raiva e frustração na Rússia, que se sente traída por um irmão. E isso tem a ver com a incapacidade da visão dominante entre os russos de reconhecer a identidade nacional ucraniana como algo separado da Rússia”.

Toal discorda de que se veja a crise na Ucrânia do ponto de vista emocional: “Muitos analistas fazem isso e penso que é uma abordagem perigosa. Quando olhamos para os argumentos emotivos da crise na Ucrânia, tendemos a reduzi-los a ideias como a de que Putin está chateado e zangado. Nós o transformamos em uma espécie de louco, que toma decisões irracionais. Isso é um erro. Essas emoções são genuínas e fazem parteda cultura geopolítica da Rússia, então qualquer líder daquele país teria de lidar com elas e decidir se afirma-las ou deixa-las de lado.” E destaca: “Acredito que as políticas de Putin tem muito a ver com sua personalidade e sua história como ex-agente da KGB (agência de inteligência da URSS) que foi treinado na era soviética e que tem um anseio particular por um Estado forte. Todas essas coisas são extremamente importantes. Um líder da geração  mais jovem provavelmente abordaria essas questões de maneira diferente, mas essas emoções são genuínas e não podemos dizer que são apenas elementos da personalidade de Putin”.

Para George Friedman, da Geopolitical Futures: “A Ucrânia é a fronteira ocidental da Rússia. Quando os russos foram atacados pelo oeste durante a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra Mundial, foi o território da Ucrânia que os salvou. Inimigos tinham de percorrer mais de 1,6 mil quilômetros para chegar à Moscou. Se a Ucrânia cair nas mãos da OTAN, Moscou estaria a apenas 640 km deles. Foi a Ucrânia que salvou os russos de Napoleão. Portanto, se trata de uma zona de segurança que eles querem manter”. Para este comentarista político, os líderes russos fazem menção à Doutrina Monroe do século XIX (“A América para os americanos”), usada contra as intervenções européias na América, pois por esta ótica territórios como a Ucrânia fazem parte de uma zona de influência histórica russa e onde não deve haver interferências externas. Para esse comentarista: “(...)Do ponto de vista da segurança nacional da Ucrânia, eles buscam aliados contra um Estado que veem como muito perigoso e que já lhes tomou parte de seus territórios reconhecidos internacionalmente”. E sobre a preocupação geopolítica da Rússia diz ele: “Sim, os dois países compartilham uma historia comum. Historicamente, a Ucrânia foi dominada e oprimida pelos russos. Durante o período soviético, eles sofreram uma grande fome, em que milhões  de pessoas morreram, porque a Rússia queria exportar os grãos que produziam. A grande unidade entre o povo russo e ucraniano é um absurdo”

Outro especialista, o professor Maurício Santoro, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj),disse: a causa última de todos esses conflitos envolvendo a Ucrânia é definir qual é a esfera de influência da Rússia, dos Estados Unidos e da União Europeia no Leste da Europa”. Esse estudioso destaca que depois do fim da URSS houve uma expansão da influência ocidental nos países que antes eram aliados da URSS e até mesmo em ex-repúblicas soviéticas. Disse a respeito: “Elas passaram a fazer parte da União Europeia, da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], ou dos dois ao mesmo tempo.” Sobre a expansão da OTAN e a sensação de estar sob ameaça por parte da Rússia ele disse: Uma ameaça para sua própria integridade territorial” e especificamente no caso da Ucrânia afirmou: “Basicamente a metade leste do país tem uma história muito ligada à Rússia e uma presença muito grande de pessoas que falam russo, com origem étnica russa, quer dizer os laços históricos ali realmente são todos voltados para a Rússia”. Porém fez observações sobre diferenças entre a parte leste e a parte oeste da Ucrânia. Sobre a parte leste: “Basicamente a metade leste do país tem uma história muito ligada à Rússia e uma presença muito grande de pessoas que falam russo, com origem étnica russa, quer dizer os laços históricos ali realmente são todos voltados para a Rússia (...). Sobre a parte oeste:..”É um território que, em vários momentos da história, fez parte do império Habsburgo ou fez parte da Polônia. É outra cultura, outra tradição histórica, então a Ucrânia é, ela mesma, muito dividida com relação a para onde ele vai.”

Sobre a questão energética que envolve a Rússia e países da Europa, o professor Barbosa fez o seguinte comentário: “Na eventualidade de um conflito armado naquela região, a Rússia poderia suspender o fornecimento deste gás, que é vital. Um dos países que mais sofreria com isso é a Alemanha, o que talvez explique o fato de que, ao contrário do Reino Unido e ao contrário da França, a Alemanha, até o presente momento, não abriu a boca para contestar Putin”.

Diante de todo o cenário apresentado e considerando as análises mostradas acima, uma guerra envolvendo Rússia e Ucrânia terá graves efeitos não só para os dois países. Também outros países serão afetados e poderá haver consequências na economia mundial. É preciso que todas as ações diplomáticas sejam tentadas para evitar um confronto bélico e se estabelecer a paz. Penso que deve ser encontrar um meio de assinar um acordo político, possivelmente com a não adesão da Ucrânia à OTAN, mas com a garantia territorial da Ucrânia, que deveria ser restituída dos seus territórios incorporados à Rússia recentemente, com a garantia de todos os direitos políticos e culturais das populações etnicamente russas na Ucrânia e possibilitando a continuação da base militar russa em Sebastopol, na Crimeia, que é considerada altamente estratégica pela Rússia. Quanto à entrada definitiva na União Europeia, considero ser direito da Ucrânia decidir se vai fazer parte da mesma. Também penso que poderiam ser mantidos laços fortes culturais com a Rússia, assim como se estabelecendo relações políticas e econômicas com este país, desde que preservando totalmente a independência da Ucrânia.

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Márcio José Matos Rodrigues-Professor de História.

 

 

Figura:

https://www.google.com/search?q=imagem+do+mapa+da+ucrania&tbm=isch&ved=2ahUKEwi9zv21oOL1AhWVupUCHTJHAcQQ2-cCegQIABAA&oq=imagem+do+mapa+da+ucrania&gs_lcp=C

 

 


Um comentário:

  1. Nesse momento de crise sanitária global é muito importante à diplomacia para não aumentar a fome nós países pobres.

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